quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A dor de viver: análise crítica do caso de Nathan Verhelst

Trazemos aqui uma análise crítica do caso do belga Nathan Verhelst, que após passar por vários tratamentos e cirurgias para redesignação sexual, optou pela eutanásia quando as mudanças não atingiram os resultados desejados e, ao invés disso, o fizeram sentir que havia se transformado em um “monstro”. Neste texto, não oferecemos respostas, ao invés disso provocamos algumas reflexões sobre o sofrimento psíquico que leva um sujeito à decisão de dar um fim em sua vida. O trabalho foi realizado na disciplina Ética e Bioética II, 5º semestre da nossa graduação em Psicologia.



A DOR DE VIVER: ANÁLISE CRÍTICA DO CASO DE NATHAN VERHELST

A importância da relação entre mãe e filho no primeiro estágio da vida é um conceito explorado por diversos teóricos em diferentes linhas de abordagem na psicologia, mas há sempre uma constante ou um leve ponto de concordância no que diz respeito às consequências configuradas no desenvolvimento psíquico de uma criança quando há conflito no estabelecimento dessa primeira relação.
Com o material que se tem a disposição de domínio público a respeito do caso de Nathan Verhelst – nascido “Nancy”, gênero atribuído ao nascimento: feminino – seria possível criar uma hipótese imediata de que seu caso configura uma situação de rejeição materna, onde houve uma negação que partira principalmente por parte da figura materna na constituição de laços afetivos. Esses laços maternos, aparentemente, não foram criados e consequentemente uma construção de uma relação mãe-filho saudável também não foi possível de ser estruturada entre estes dois indivíduos. 
A mãe de Nathan o rejeitou desde o nascimento, impedindo que qualquer vínculo fosse criado, recortes de seu diálogo que podem ser encontrados em entrevistas são cercados de afirmações que sustentam essa rejeição:

Quando eu vi “Nancy” pela primeira vez meu sonho foi destruído. Ela era tão feia... Eu tive um parto fantasma. A morte dela não me incomoda. [...] Para mim, esse é um capítulo encerrado. A morte dela não me afeta, eu não sinto nenhuma mágoa ou remorso. Nós nunca tivemos algum vínculo para que este pudesse ser quebrado (MORSE, 2013, tradução livre).

Esta rejeição é sentida e experienciada por Nathan, sendo possível encontrar os elementos do sofrimento causados pela postura de sua mãe em seu diálogo. Mesmo após os procedimentos para a sua transição, Nathan continuou sentindo-se um estranho em seu próprio corpo e os sentimentos de deslocamento permaneceram com ele. As palavras relatadas por Nathan a respeito de seu “novo corpo” apontavam para um conteúdo onde se pode refletir que sua decisão em ter engajado nos procedimentos cirúrgicos para efetuar a transição, posto que essa atitude na realidade representaria o desejo de sua mãe inscrito nele e uma tentativa de receber o olhar e aprovação dessa mãe. 
Desde o nascimento de Nathan, ela parecia expressar sua indiferença e preferência pelo sexo masculino, repetindo que gostaria de ter outro filho e não uma filha. Desse modo, os procedimentos não bastaram para sanar o conflito psicológico no qual Nathan havia sido exposto, durante toda sua vida, diante do descaso da mãe, até onde se sabe, e talvez pelo resto de sua família, embora sobre isso não existam informações disponíveis.

Eu era a garota que ninguém queria. Enquanto meus irmãos eram celebrados, meu quarto era um armazém em cima da garagem. ‘Se pelo menos eu tivesse nascido garoto’, minha mãe sempre reclamava. Eu era tolerado, nada mais. [...] Eu estava pronto para celebrar o meu novo nascimento. Mas quando olhei no espelho, senti nojo de mim mesmo. Meu peito novo não estava de acordo com as minhas expectativas e o meu novo pênis possuía sintomas de rejeição. Eu não queria ser um monstro (MORSE, 2013, tradução livre).

De acordo com Berthon e Varieras (2001), todo indivíduo possui um esquema corporal internalizado, onde existem processos neurológicos que permitem experienciar as sensações próprias dos sentidos. Caso haja uma perturbação de ordem neurológica, o esquema corporal pode ser gravemente alterado. Já a imagem do corpo só pode ser construída e existir na relação com o outro no mundo externo, existe um aspecto determinante de relação e simbolismo com a experiência do espelho, a criança sempre está em busca de um outro indivíduo, geralmente a mãe ou alguém que assuma o papel materno, que seja capaz de atender às suas demandas e dar-lhe sentido e significado, tanto para ela própria quanto para o mundo ao seu redor, se não houver na vida dessa criança um indivíduo que atue como facilitador na mediação dessa experiência, o sujeito pode perder a significação de sua imagem corporal.
As perturbações que se originam da concepção que se tem da imagem corpórea podem caracterizar uma angústia patológica, o que pode ser inferido no caso de Nathan, onde se pode observar através de seus relatos, um tumulto interior derivado dos conflitos internos e externos, provenientes tanto de seu “mau” relacionamento com a família, e consequentemente, a angústia junto aos afetos, que surge mesclado com outro sentimento e transfere-se para o corpo, causando sua angústia com a própria imagem. 
No caso de sua cirurgia de redesignação sexual, onde Nathan estava supostamente sentindo-se realizado, houve logo após uma ruptura com esse sentimento de satisfação, fazendo com que ele se sentisse novamente incompleto. Ele afirmava que em sua vida, teve momentos felizes, mas que em geral, havia apenas sofrimento e que, em suas palavras, “44 anos é tempo demais na terra” (MORSE, 2013, tradução livre).
Escrever sobre a sexualidade e, particularmente, sobre as problemáticas que envolvem a identidade sexual não é tarefa das mais fáceis, conforme aponta Gracia (2001). Tal temática sempre esteve envolta em proibições, preconceitos e paixões de toda ordem. A psicanálise é, por excelência, a disciplina que permitiu tratar da sexualidade humana da forma mais isenta dos vieses e preconceitos que sempre a envolveram.
Ao abrir caminho para infinitas discussões acerca do desenvolvimento psicossexual humano, Freud (1905), com a psicanálise, nos apresentou a hipótese de que haveria uma predisposição à bissexualidade resultante de um extenso processo de constituição de um sujeito, que viria a determiná-lo estruturalmente. Não iremos nos aprofundar em nenhuma dessas questões que, por certo iriam exigir de nós uma postagem inteiramente dedicada à exploração desses conceitos, mas que, neste caso, iremos nos ater somente a essa compreensão talvez rasa, mas suficiente para o intuito deste estudo, de que cada pessoa, de acordo com as suas experiências e interações com os objetos de seu meio de convívio, constitui uma identidade sexual a partir dessas relações ditas objetais, em um processo psíquico, em que existe algo além, que atravessa o entendimento puramente biológico, e deveras determinista, acerca das identificações de natureza sexual.
Com isso em mente, o caso Nathan Verhelst nos convida a ponderar hipóteses acerca de seu desejo de viver e ser aceito por sua mãe, algo que estaria relacionado a essa questão das relações objetais, mesmo que usualmente fosse acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade. Nathan submeteu-se a tratamentos hormonais e cirurgias para tornar seu corpo adequado ao desejo da mãe, em uma possível tentativa de agradá-la — é o que podemos pôr em questão —, mas no fim, escolheu morrer por eutanásia, afirmando categoricamente que as intervenções cirúrgicas para redesignação que tinham como finalidade transformá-lo num homem, acabaram transformando-o num “monstro” (MORSE, 2013).
Os médicos admitiram que a cirurgia de reconstrução dos órgãos genitais foi um desastre e afetaram as funções vitais, e que a qualidade de vida de Nathan diminuiu consideravelmente. Aqui é possível perceber que Nathan não obteve total satisfação com sua nova realidade corpórea, o médico também expôs em uma entrevista que as operações de redesignação sexual de Nathan tinham deixado também cicatrizes físicas que impediram seu corpo de cumprir funções fisiológicas básicas. Em suposição, é possível ultimar que, além do sofrimento psíquico gerado em Nathan como resultado de sua relação mal constituída com sua mãe, também houve a acerba decepção com a nova realidade de seu corpo, configurando um sofrimento insuportável que o levou a optar pela eutanásia voluntária.
De acordo com Souza (2014), Nathan teve seu pedido pela eutanásia atendido, mas sua história até hoje tem tido repercussão. Diversos estudos afirmam que a comunidade transexual e transgênero representa um público que carece de assistência, com escassos parâmetros referentes ao tratamento médico adequado desses indivíduos. Em virtude dessas falhas no sistema, os candidatos à cirurgias de redesignação sexual são indevidamente avaliados e submetidos a tratamentos arriscados, como intervenções de cirurgias plásticas mal fundamentadas e uso de medicamentos inadequados. Esse pública tem a necessidade de obter atendimento por equipes formadas por profissionais responsáveis e instruídos, que compreendam o universo e as lutas que envolvem essas transformações, que nem de longe são apenas externas.
Singer (1998) fala sobre o fato de ser possível ocorrer legalmente a eutanásia voluntária em outros países, esta pode acontecer quando pessoas que sofrem com doenças incuráveis, muitas dores ou um amplo sofrimento psíquico, decidem morrer, muitas vezes pedindo a seus médicos que acabem com tais sofrimentos. No entanto, caso o médico aceite ajudar essa pessoa a pôr fim em sua dor existencial, poderá ser acusado de assassinato, pois a lei define que “nem o pedido, nem o grau de sofrimento, nem a condição incurável da pessoa morta configuram uma defesa diante da acusação de assassinato” (SINGER, 1998, p. 203). 
De acordo com Singer (1998), também há quem defenda o direito da eutanásia voluntária, tanto que na Holanda e na Alemanha o procedimento é possibilitado, os defensores de tal direito alegam que a morte será uma benfeitoria para quem deseja morrer. Geralmente se possui uma vontade fervorosa de viver, entretanto, quando a vontade de viver se torna angustiante, esta se volta à vontade de morrer, como acontece com Nathan, que ao invés de possuir a vontade de viver, passa a buscar a própria morte.
As exigências descritas por Singer (1998) para a eutanásia em países europeus como a Holanda são específicas, condizentes no que se refere ao respeito à autonomia do sujeito, pressupõem que os pedidos de eutanásia são cautelosamente analisados antes de serem realizados e consideram tanto os sofrimentos físicos como os psíquicos. Partindo desses princípios, o sofrimento psíquico de Nathan teve peso mais que suficiente para justificar seu pedido de eutanásia, pois a atitude de prolongar sua vida biologicamente não seria necessariamente melhor ou superior às demais alternativas que Nathan possuía, devido ao sofrimento que ela já vinha passando desde a sua infância.
Pode-se considerar que, pelo menos em grande parte das culturas, é transmitida a ideia de que o ato de matar um ser humano é pior do que o ato de omitir a ajuda para impedir a sua morte, fato também descrito por Singer (1998). No Brasil, essa cultura ainda é muito forte e está longe de ser desconstruída, pois juntamente com a questão da eutanásia, surgem as implicações sobre o aborto e seus quesitos éticos relacionados ao direito de matar. 
Essas questões, no entanto, não se tratam de se um posicionamento contrário ou favorável acerca desses temas tão delicados, que somente quem os vivencia direta ou indiretamente, sabe o quão difícil é tomar uma decisão a respeito. Trata-se, acima de tudo, de respeitar o direito que o outro tem de decidir sobre si, sobre seu próprio corpo, o direito de exercer ou não os seus próprios direitos, uma vez que não são deveres. Trata-se da reflexão sobre o quanto a sociedade tem — ou deve ter — direitos de intervir sobre as decisões do indivíduo, principalmente em assuntos que terão efeito principal e diretamente sobre ele mesmo, e pouco ou nenhum efeito será refletido na sociedade. Trata-se de analisar o quanto o homem está sendo parte da sociedade e o quanto ele está sendo uma propriedade dela, no sentido de que a tomada de decisão sobre os seus direitos individuais já não é mais exclusiva da pessoa em questão, mas das pessoas que a cercam, como o que houve inicialmente com Nathan, até que ele conseguisse que fosse realizada a sua eutanásia. 
Assuntos tabus como a eutanásia e o aborto ainda não são discutidos abertamente sem que haja rebuliço, mesmo em países com culturas mais evoluídas, justamente por se tratar da possibilidade que não se dê valor à vida, que é um bem tão excessivamente valorizado e exaltado pelos seres humanos, de acordo com seus próprios discursos. Não obstante, basta uma observação mais cautelosa sobre o modo de vida das pessoas e poder-se-á notar que as atitudes tomadas pelos indivíduos são, em grande parte, prejudiciais às suas próprias vidas ou das pessoas ao seu redor e, para cometer tais atitudes, se usa as mais variadas justificativas, que comumente são aceitas. Seria, portanto, hipocrisia uma pessoa que, por exemplo, fuma e bebe excessivamente, ou uma pessoa que vive única e exclusivamente para o trabalho sem se importar com a sua saúde física, mental e social, condenar alguém que não satisfeito com a sua situação de vida, decide pôr fim à ela.
A análise do caso de Nathan Verhelst nos leva a compreender que ele não pôde aceitar sua nova realidade corpórea, assim como não se reconheceu nela. Seu “novo corpo” deveria marcar um “renascimento”, porém Nathan não teve suas expectativas e anseios correspondidos, o que se configurou como um dos maiores motivos para que ele desejasse a eutanásia. 
Mesmo assim, pensamos que além de se refletir sobre o fato de se aceitar ou não a eutanásia consentida, se deve analisar qual estaria sendo o real motivo que teria levado Nathan, e que leva tantas outras pessoas, a procurarem tal medida, afinal, como já citado, esses motivos variam entre dores tanto físicas como psíquicas. Desse modo, aqui caberia uma interrogação, que está longe de cessar as suas reflexões, sobre como é possível intervir nestes casos em que o indivíduo deseja a própria morte, e como nós, como profissionais da Psicologia, poderíamos oferecer um suporte adequado e preventivo à elas.

Nathan em 29 de setembro de 2013, um dia antes de sua eutanásia

REFERÊNCIAS

BERTHON, D. & VARIERAS, M. Um caso de criança de F. Dolto: A menina do espelho ou a imagem inconsciente do corpo. In: NASIO, J. D. et al. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 7. Rio de Janeiro: Imago. (1969 [1905])

GRACIA, J. C. Problemáticas da identidade sexual. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

MORSE, J. R. Euthanizing the unhappy: the urgent need for love. 2013. Disponível em: <http://goo.gl/HpiyIB>

SINGER, P. Ética prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SOUZA, C. A. C. Transexualismo: diagnóstico, tratamento e alteração da identidade genérica. Vol. 9, nº4, 2004.

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COMO REFERENCIAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C.; PEREIRA, J. K.; SILVA, A. V. A dor de viver: análise crítica do caso de Nathan Verhelst. Curitiba, 26 dez 2018. Disponível em: <https://psiqueempalavras.blogspot.com/2018/12/a-dor-de-viver-analise-critica-do-caso.html>

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