segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Enamoramento e Hipnose

Essa postagem traz um resumo dos conceitos de “Enamoramento e Hipnose” presente no livro de Sigmund Freud “Psicologias das Massas e Análise do Eu”, complementando a postagem anterior. O trabalho foi realizado no terceiro semestre na disciplina Psicanálise II.








ENAMORAMENTO E HIPNOSE

Amor, quantos caminhos há até chegar a um beijo, 
que solidão errante há em tua companhia! 
Passam os trens sós rodando com a chuva. 
Em Taltal não amanheceu ainda a primavera. 
Porém tu e eu, amor meu, estamos juntos, 
juntos desde a roupa as raízes, 
juntos com outono, da água, dos quadris, 
até ser só tu, só eu juntos. 
Pensar que custa tantas pedras que leva ao rio, 
a foz da água de Boroa, 
pensar que separados por trens e nações.
Tu e eu tínhamos que simplesmente amarmo-nos, 
com todos confundidos, com homens e mulheres, 
com a terra que implanta e educa os cravos 
(NERUDA, 1997)

Sentimentos de afeição, atração, ligação espiritual, carinho, simpatia, apego, disposição afetiva que pode ou não envolver ligação de cunho sexual, dedicação e cuidado, estas são apenas algumas dentre as muitas definições encontradas ao se buscar o conceito da palavra “amor” em qualquer dicionário comum. 
Num sentido metafórico, como o utilizado na literatura, também se atribui ao amor uma infinidade de significados que buscam defini-lo ou talvez apenas ilustrá-lo, na tentativa de elucidar um pouco que seja o seu real e complexo significado. 
O “Soneto II” de Pablo Neruda (1997) se apresenta como exemplo sobre este sentido metafórico que a literatura se utiliza, assim como o soneto também carrega consigo diversos elementos que podem ser interpretados e compreendidos de uma nova maneira através de alguns conceitos psicanalíticos que serão compreendidos na sequência.
Freud (1921), em seu texto “Enamoramento e Hipnose”, aponta para uma interessante questão onde foi capaz de observar que, para diversos tipos de relações, a palavra “amor” era atribuída, isso levou a colocar em questão se aquilo que se denomina “amor”, o seja de fato. Esse “amor comum” que Freud chama de “enamoramento” ou amor sensual, não passa de um ou mais investimentos objetais da ordem dos instintos[1] sexuais e tem como função a satisfação sexual direta, extinguindo-se quando esta é alcançada. Porém, é preciso que exista uma certeza de que a anterior necessidade, agora saciada, retorne e seja direcionada ao mesmo objeto sexual, formando um investimento duradouro. Desse modo, o objeto sexual permanece sendo “amado” mesmo nos intervalos onde não há desejo. 
Para Freud (1921), o enamoramento não se limita ao objeto direcionado dos instintos sexuais, sendo estes responsáveis pela busca de uma satisfação direta e que após esta satisfação se concretizar, estes instintos simplesmente desapareçam, pois é a partir da confiança de que essa ânsia de satisfação reaparecerá o objeto sexual persistirá, mesmo que o indivíduo não ache imprescindível a sensação do “amor”.
Freud (1921) mostra que, com base na primeira fase da vida de um indivíduo, esta é também a primeira fase do desenvolvimento amoroso humano, ela vem a se completar geralmente na criança, lá pelos cinco anos de idade, onde encontra em um dos pais o seu primeiro objeto de amor (libidinal) o qual reúne todos os seus instintos sexuais que exigiam atenção e satisfação. Para o menino, esse objeto é, geralmente, o pai e para a menina, a mãe. Após isso, vem a repressão destes desejos, impondo a eles a renúncia que faz com que haja uma mudança total na relação da criança com seus pais. Ela continua ligada a eles, mas seus sentimentos agora são denominados “ternos”, ainda que em maior ou menor grau, essas tendências sexuais continuem existindo no inconsciente. Já na puberdade são introduzidas novas tendências à satisfação dos desejos sexuais diretos e mais específicos.
Em relação à superestimação sexual, Freud (1921) aponta ao fato de que este compreende ao fenômeno onde o indivíduo isenta o objeto amado de seu senso crítico, elevando mesmo os atributos que não eram valorizados antes, quando este objeto ainda não era amado. Deste modo, uma ilusão pode ser criada em torno do objeto que pode acabar emprestando méritos da satisfação sexual e sendo confundido como objeto que é amado sensualmente, conceito que, basicamente, sugere a definição da idealização. 
Freud (1921) compreende ainda que, de certa forma, o enamoramento pode ser encarado também por uma perspectiva ligada ao narcisismo, indicando que em todo caso de enamoramento há traços de restrição do narcisismo, juntamente com traços de humildade e autodepreciação. O indivíduo escolhe em suas relações amorosas indivíduos que venham a apresentar características que ele aspira para si – o seu próprio Eu – ou como forma de substituir um ideal não alcançado por ele, assim satisfazendo o seu narcisismo. 
Durante este processo, Freud (1921) fala que no enamoramento deposita-se no objeto suas libidos narcísicas, ou seja, ama-se aquilo que foi idealizado para si mesmo, obtendo-o através do outro, desta forma saciando seus desejos narcísicos. Porém, caso a superestimação sexual e o enamoramento cresça ainda mais, “o Eu acaba sendo devorado pelo objeto” (Freud, 1921, p. 56), ou seja, o Eu vai se tornando cada vez mais modesto ao passo de que o objeto vai se tornando cada vez maior e mais precioso, até que ele tome conta de todo o amor-próprio existente no Eu, ocorrendo então um autossacrifício. 
No amor infeliz, Freud (1921) aponta que o aumento da humildade e restrição narcísica e de autodepreciação ou autossacrifício ocorrem com mais facilidade, posto que a superestimação sexual é reduzida a cada vez que ocorre uma satisfação da mesma. Ao mesmo tempo em que o Eu se entrega ao objeto e ele já não mais se diferencia da entrega sublimada à idéia abstrata, as funções pertencentes ao ideal do eu deixam de funcionar de maneira apropriada, não havendo mais a crítica que essa instância exerce. Tudo que o objeto faz e pede (refere-se à idéia abstrata) é justo e irrepreensível (refere-se à sublimação[2]).
Freud (1921) resume essa situação em uma simples fórmula: “O objeto se colocou no lugar do Eu” (Freud, 1921, p. 56), ou seja, se o ideal do Eu refere-se ao que o indivíduo gostaria de ser ou ter, neste caso então ele já não mais discerne entre o seu próprio Eu e o objeto como coisas distintas. Neste ponto, há a diferenciação entre identificação e enamoramento. Em suas mais desenvolvidas formas, existe o “fascínio”, onde o Eu é, de certa forma, “aprimorado” por traços do objeto; já na “servidão enamorada”, o Eu está “empobrecido” e coloca o objeto na posição mais importante de si. E no caso da identificação, o objeto é perdido ou renunciado e então novamente instaurado no Eu, que aos poucos se altera ao modelo do objeto que foi perdido. Freud explica que durante a identificação pode-se dizer que o Eu é acrescentando, é “enriquecido” a partir do seu objeto, diferente do enamoramento, em que o Eu do indivíduo parece ser esgotado, se dando ao seu objeto. Com isso fica a idéia de que “(...) o objeto seja colocado no lugar do Eu ou no ideal do Eu” (Freud, 1921, p. 56). 
A partir disso, Freud (1921) faz uma comparação entre o enamoramento e a hipnose, já que em ambos os casos o enamorado ou o hipnotizado apresentam grande humildade com relação ao outro e ambos também renunciam suas iniciativas pessoais, porém no caso da hipnose, não há satisfação das aspirações sexuais que no enamoramento se apresenta como uma hipótese de ser satisfeita no futuro. A maior distinção destes dois casos é que na hipnose as características de submissão, docilidade e falta de senso crítico apresentam-se com maior clareza. Pode-se notar que em ambos os casos ocorre um abandono dos desejos do ideal do Eu, porém no enamoramento isso ocorre de forma temporária. Na hipnose, por exemplo, existem pessoas que não se permitem hipnotizar e também existem aquelas que se mostram demasiadamente receptivas ao processo hipnótico.  
Ainda dentro desse processo, Freud (1921) considera que podem surgir antes ou depois, elementos de resistência (referindo-se a consciência moral do indivíduo), onde, no primeiro caso o indivíduo apresenta a resistência antes mesmo de ser hipnotizado e no segundo caso, mesmo após já ter sido hipnotizado, ele pode apresentar a mesma resistência em relação a outros acontecimentos apesar da “docilidade” existente, o que pode se sugerir a idéia de um sentimento recalcado[3] que estaria causando essa resistência nessa determinada situação.
Com isso, Freud (1921) conclui que pode se estabelecer um paralelo entre a hipnose, o enamoramento e a constituição libidinal de uma massa, pois há uma ideia de que na hipnose há o hipnotizador que se apresenta como uma figura de poder e o hipnotizado é aquele que se coloca na posição de humildade (ponto presente no enamoramento), deixando seu Eu de lado e coloca o hipnotizador como objeto do ideal do Eu, de maneira semelhante, é isso que se pode observar nas constituições das massas onde há um líder, esse líder é o objeto de identificação do meio exterior, onde diversas pessoas investem neste indivíduo (objeto externo) como objeto do ideal do Eu.

NOTAS

[1] Com o auxílio de uma nota de Spitz (2013), um apontamento é necessário sobre o uso do termo “instinto” e “impulso” que pode variar, dependendo da edição, nas obras de Freud. Em toda Standard Edition isso acontece pelo fato de haver uma divergência nas edições traduzidas diretamente do alemão e as traduzidas do alemão para o inglês. Waelder (1960) aponta para o problema de a língua inglesa não possuir um melhor termo que corresponda ao termo alemão Trieb (que nas traduções atuais aparece como “impulso” ou “pulsão”), posto que este termo é muito mais utilizado por Freud do que o termo Instinkt, sendo este raramente utilizado por ele em suas obras.
[2] Mecanismo de defesa pelo qual a energia psíquica de tendências e impulsos inaceitáveis e primitivos se transforma e se dirige a metas socialmente aceitáveis; os impulsos inaceitáveis encontram desse modo uma “saída” para satisfazer tais impulsos e ao contrário de outros mecanismos de defesa, na sublimação os impulsos encontram saídas artificiais. (DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA PRÁTICA, 1972)
[3] Recalque é um importante termo na Psicanálise e na obra de Freud e é o mais importante mecanismo de defesa do indivíduo; para uma breve definição sobre o recalque é necessário dizer que este consiste em afastar ou repelir das instâncias do consciente determinados impulsos e desejos que sejam incompatíveis com as motivações do consciente, “empurrando” esses desejos para o plano inconsciente, numa tentativa de “fuga” desse conflito entre tendências opostas; pode ser dividido em um aspecto primário que diz respeito ao material que nunca esteve ao acesso do consciente e o secundário que diz respeito ao recalcamento propriamente dito, ou seja, a repressão do material que já esteve ao alcance e acesso do consciente, essa repressão depende da formação de símbolos. A “repressão” apesar de utilizada como “sinônimo” do recalque tem sua diferença estabelecida por ser um processo consciente, onde o indivíduo tem pleno conhecimento dela e pode agir sobre ela de forma racional, já o recalque situa-se no plano inconsciente e, geralmente, o indivíduo sequer tem conhecimento dele, logo, sendo impedido de agir diretamente sobre o que quer que tenha sido recalcado. (DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA PRÁTICA, 1972)

REFERÊNCIAS

FERREIRA, A.B.H. Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2128p.

FREUD, Sigmund. Enamoramento e hipnose. In S. Freud. Obras completas (P. C. de Souza, trad., vol. 15). São Paulo: Companhia das Letras, [1921] 2011.

DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA PRÁTICA. Vol. I. 4ª ed. São Paulo: Honor, 1972.

NERUDA, Pablo. Cem sonetos de amor. 1ª Edição. São Paulo: L&PM EDITORES, 1997.

SPITZ, R. O primeiro ano de vida: um estudo psicanalítico do desenvolvimento normal e anômalo das relações objetais, 4ª ed., Martins Fontes: SP, 2013.

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COMO CITAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C.; PEREIRA, J. K. Enamoramento e hipnose. Curitiba, 10 set 2018. Disponível em: <https://psiqueempalavras.blogspot.com/2018/09/enamoramento-e-hipnose.html>

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