segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A ficção de encontro com a realidade: a psicose de Norman Bates e Ed Gein

Essa postagem é uma continuação da postagem anterior sobre a temática da Psicose, onde fizemos a sua definição. Aqui, trazemos a continuação do trabalho, onde fazemos uma análise do personagem icônico Norman Bates do filme Psicose de 1960 e o paralelo existente entre ele e o caso de Ed Gein na vida real, delimitando a estrutura psicótica encontrada em ambos os sujeitos, utilizando para tal análise autores da psicanálise.



A FICÇÃO DE ENCONTRO COM A REALIDADE: A PSICOSE DE NORMAN BATES E ED GEIN 

Ed Gein
   De acordo com Casoy (2004), Ed Gein nasceu no dia 27 de agosto de 1906 e viveu uma infância repressiva e solitária junto com sua a mãe Augusta, uma religiosa fanática, dominadora e abusiva, seu irmão Henry e seu pai George, um alcoólatra considerado um “fraco” por Augusta. Os meninos desde cedo foram ensinados que o sexo era um ato pecaminoso e que merecia ser severamente punido. Augusta tentava afastar seus filhos de todo o mal que acreditava existir no mundo e trabalhou para isso até que ela e sua família pudessem se mudar para um sítio isolado em Wisconsin. Mas ainda assim, Augusta precisava permitir que as crianças fossem à escola. Por conta de sua criação, Gein sofria nas mãos das outras crianças, por ser considerado afeminado e tímido, e por conta disso ele se isolava com seus livros de aventuras que estimulavam a sua imaginação. Gein não via maldade nas atitudes de sua mãe e, na realidade, a considerava um exemplo de bondade e tentava obedecer e atender a todos os seus desejos, mantendo-se o quanto fosse possível afastado de todas as pessoas. 
   Segundo Bell & Bardsley (s.d.), a vida de Gein mudou drasticamente com a morte de seu pai em 1940. Sua mãe não se casou novamente e ele e o irmão ficaram com todo o trabalho da fazenda herdada por eles. Augusta fazia seus filhos acreditarem que qualquer mulher que não fosse ela própria, não prestava, não saberia honrar o amor oferecido a ela e seria responsável por separar a família, pois esta era a natureza das mulheres, essa visão autoritária de Augusta para seus filhos futuramente causaria sérias consequências, principalmente em Gein. Embora os filhos tentassem satisfazê-la ao máximo, Augusta estava constantemente agredindo-os com palavras depreciativas, pois acreditava que ambos seriam um fracasso exatamente como seu marido havia sido. 
   De volta à Casoy (2004), o irmão de Gein morreu em 1944 em um incêndio e alguns acreditavam que Gein teria sido o responsável pela morte de Henry, por desejar ter a mãe apenas para si, mas a veracidade dessa especulação nunca foi comprovada, no entanto existem relatos que afirmam que Gein realmente possuía um forte apego à Augusta e estava sempre disposto a bater em seu irmão quando este faltava com respeito com sua mãe, mesmo quando eles eram crianças. Em 1945, Augusta morre, Gein nessa época já estava com 39 anos de idade, as suas perturbações então começam a se desenvolver e ele ainda se sentia emocionalmente escravizado pelo fantasma de sua mãe. Ele trancou o quarto dela para que ficasse intacto e passou a usar apenas o andar inferior de sua casa. Logo, a casa começou a também se degenerar junto com sua própria sanidade e graças aos subsídios federais, pode parar de cultivar nas terras da fazenda, passando a prestar trabalhos para a vizinhança para conseguir dinheiro, trabalhava até mesmo cuidando de crianças.
   Segundo Casoy (2004), Ed começou a desenvolver um grande interesse pela anatomia feminina, estudando o assunto em livros de anatomia, medicina e revistas pornográficas. Teve um interesse especial pelos experimentos realizados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e nesse ponto, a fixação de Gein o levou a querer explorar a anatomia feminina na realidade e não apenas estudá-lo através dos livros. Começou a ler obituários de jornais para se informar das mortes do dia e seus locais de enterro e com a ajuda de seu amigo, Gus, passou a desenterrar corpos recém enterrados para que pudesse realizar seus experimentos. 
   Bell & Bardsley (s.d.) relatam que Ed conta nunca ter transado com nenhum dos cadáveres que ele desenterrou e desmembrou. Os corpos eram levados para casa de Ed e lá ele os dissecava e guardava alguns membros e órgãos, entre eles, genitálias. Eram sempre corpos de mulheres com a idade aproximada a idade de sua mãe quando ela havia morrido. A insanidade de Gein continuava progredindo, até que ele passou a retirar a pele dos corpos que roubava e confeccionar roupas com estas peles. Em algumas noites, Ed vestia estas roupas e realizava uma espécie de ritual ao redor de sua casa, ele tocava as genitálias das calças que vestia feitas com as peles das mulheres, para se sentir mulher. Bell & Bardsley acreditavam que Ed tinha curiosidade em saber como era ser uma mulher e como seria possuir seios e uma vagina. Ed Gein era fascinado pelas mulheres e pelo poder que elas exerciam sobre os homens. Quando perde a companhia de Gus, Ed se vê novamente sozinho e a dificuldade para desenterrar os corpos passa a ser maior, o que o leva ao próximo estágio, onde ele começa a assassinar mulheres para conseguir o “material” que precisava.
   Na ficção, o caso de Gein foi representado algumas vezes nas telas e nas páginas, como o filme O Massacre da Serra Elétrica (1974) que possui elementos inspirados na história de Gein, embora nenhum dos personagens do filme realmente seja uma representação dele; no filme da franquia de Hannibal, O Silêncio dos Inocentes (1991), com o personagem Buffalo Bill (Ted Levine); e na série American Horror Story: Asylum (2012), com o personagem Oliver Thredson (Zachary Quinto). 
Anthony Perkins como Norman Bates
em Psicose (1960)
Aqui faremos um destaque à história de Norman Bates, personagem diretamente inspirado em Ed Gein, do livro Psicose, escrito por Robert Bloch e originalmente publicado em 1959 e adaptado por Alfred Hitchcock para o cinema em 1960. Em anos posteriores, outros diretores se propuseram a produzir sequências da franquia, que dispõe de quatro filmes ao todo, mostrando diferentes períodos da vida de Norman e atualmente a série Bates Motel (2013) que retrata a adolescência de Norman (Freddie Highmore) e a relação entre ele e sua mãe, Norma Bates (Vera Farmiga). 
   Psicose possui fortes elementos da história de Ed Gein. Em Psicose (1960), Norman Bates (Anthony Perkins) também é um homem solitário que vive em uma região isolada. Sua mãe Norma Bates, era uma mulher dominadora e que estava constantemente abusando psicologicamente do filho. Levando em conta que a ficção tende a exagerar e distorcer certos elementos da psicologia, ainda assim a representação da história de Gein oferecida dentro de todo o material contido em Psicose, desde o livro de 1959 até a série de 2013, é importante. Justamente pela forma generalizada e exagerada que tanto a literatura quanto o cinema transmitem, é isso que acaba facilitando a compreensão de todas as sutilezas identificadas pela Psicanálise na estruturação da psicose.
   Assim, vale ressaltar que Psicose também possui seus elementos particulares fictícios, posto que a relação com a história de Gein é apenas uma inspiração livre na construção do personagem, mas a psicose de Norman vai além. Em dado momento, a realidade de Norman começa a se perder na fantasia e ele não mais é somente atormentado pela memória e pelo fantasma de sua mãe como passa a assumir e incorporar a personalidade dela. Ao todo, Norman possui três personalidades distintas. Bloch (1959) descreve essas personalidades da seguinte forma:
Segundo o Dr. Steiner, Bates era agora uma personalidade múltipla, dotada pelo menos de três facetas. Havia Norman, o menino que precisava da mãe e odiava qualquer coisa ou qualquer pessoa que ficasse de permeio entre ele e ela. Depois havia Norma, a mãe, que não tinha licença de morrer. O terceiro aspecto pode-se chamar de Normal, e esse correspondia ao Norman Bates adulto, que tinha de viver a rotina cotidiana e ocultar aos olhos do mundo a existência das outras personalidades. Claro, as três não eram entidades completamente distintas, e cada uma continha elementos da outra. O Dr. Steiner chama isso de "trindade maldita". Mas o adulto Norman Bates se controlava suficientemente bem, a ponto de receber alta no hospital. Voltou a dirigir o motel, e foi aí que a tensão o acometeu. O que mais lhe pesava, enquanto personalidade adulta, era o sentimento de culpa pelo assassínio da mãe. (BLOCH, 1959)
   Muniz (2010) ajuda a entender a psicose através de uma análise que faz de Norman, dizendo que o não descolamento da figura materna e o mecanismo de Foraclusão da figura paterna são elementos que se apresentam na psicose. Dentro do modelo edipiano, uma psicose pode ocorrer pelo não reconhecimento da mãe e uma falha no corte simbólico da simbiose mãe-bebê (castração), realizado pela figura paterna (inscrição da Lei), dando início assim a dualidade psíquica do indivíduo, que será então dividido e começará a compreender que existem leis e limites para o Gozo. A quebra dessa simbiose não foi propriamente realizada neste caso e em determinado momento, ele passa a não distinguir mais quem é ele mesmo e quem é a sua mãe, esta que se torna objeto de seu delírio, resultando numa despersonalização do Eu de Norman, que se fragmenta, formando novas personalidades.
   De acordo com Násio et al. (2001), no caso de Ed Gein, é possível fazer um paralelo com alguns elementos do caso de Schreber com as reflexões de Freud, onde fala sobre o fracasso na experiência da castração, também do Complexo de Édipo e a relação com a quebra falha da simbiose mãe-bebê, elementos que em ambos os casos se mostram bem evidentes. A respeito dos delírios de Gein onde ele se vestia com as peles das mulheres que dissecava e fantasiava sobre ser mulher, Násio explica que as psicoses possuem um conceito de “projeção paranóica” se dissolvendo frente ao objeto pelo qual foi substituído. 
   Para Freud (1894), a psicose alucinatória pode estar relacionado a um alerta de aumento de uma ameaça eminente, o que corrobora para o desenvolvimento doentio de uma psicose. Deste modo, pode-se perceber que o eu do sujeito nega-se a lidar com tal ameaça e a psicose ocorre como se fosse uma “fuga” que acontece numa tentativa de proteção do eu. A psicose alucinatória se relaciona mesmo que de pouco modo a realidade em que o sujeito está inserido, enquanto que o eu pode vir a se desvincular desta realidade, seja de forma parcial ou até mesmo total. Quando ocorre este rompimento entre eu e realidade as alucinações do sujeito ocorrem de modo mais vivo, o que com o tempo lhe deixa num estado de extrema confusão.
   Neste caso, se pode perceber que dentro da estrutura psicótica, a coisa se torna real, ou seja, o sujeito se encontra impossibilitado de criar uma metáfora, onde o ato substitui a palavra. Como no caso de Ed Gein, onde não era suficiente apenas vestir-se com roupas femininas, a representação precisava ir além, ele necessitava incorporar o objeto, se “sentir na pele do outro”, ultrapassando a figura de linguagem e passando ao ato de matar e confeccionar roupas com peles de mulheres e vesti-las, em uma busca por tornar-se o próprio objeto, incorporando-o, realizando assim uma metáfora delirante.
   Dolto (1971) apud Násio et al. (2001) aponta que embora realmente exista alguma falha na ordem simbólica na origem de uma psicose, a questão seria mais simples de ser detectada através da identificação da imagem corpórea e não apenas do sujeito. Para ela, a psicose se expressa como uma alienação numa imagem do corpo que sonegou à castração simbólica, ela fala que na psicose não se trata da exclusão da ordem simbólica, mas sim dos efeitos que demarcam o sujeito durante as fases primevas do desenvolvimento. Esse pensamento de Dolto serve para explicar o que Muniz (2010) analisa em relação a Norman, na ficção, podendo trazer essa análise para o caso de Ed Gein, pois o desenvolvimento de sua psicose está claramente ligado ao Complexo de Édipo e a falha na castração, ou seja, uma desestrutura familiar, principalmente quando existe uma relação distorcida com os pais, são fatores que contribuem para o aparecimento de uma psicose.


Norman Bates (Anthony Perkins) em Psicose (1960)
Norman Bates (Anthony Perkins) no auge de sua psicose
vestido como sua mãe Norma Bates em Psicose IV (1990)
Norman Bates (Freddie Highmore) e sua mãe Norma Bates
(Vera Farmiga) na série Bates Motel (2013)

REFERÊNCIAS

BELL, R. & BARDSLEY, M. Ed Gein. (s.d.) Disponível em: <http://www.crimelibrary.com/serial_killers/notorious/gein.html>

BLOCH, R. Psicose. (1959) São Paulo: Darkside Books, 2013.

CASOY, I. Ed Gein: uma inspiração para Hitchcock. In: ______. Serial killer: louco ou cruel? 6ª ed. São Paulo: Madras, 2004

FREUD, S. As neuropsicoses de defesa. (1894) In: Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. III, Primeiras Publicações Psicanalíticas (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago. Versão online. Disponível em: <http://www.freudonline.com.br/livros/volume-03/vol-iii-5-as-neuropsicoses-de-defesa-1894-die-abwehr-neuropsychosen/>

MUNIZ, P. Psicose: uma leitura psicanalítica. 2010. Disponível em: <http://paulamuniz.wordpress.com/2010/09/20/psicose-uma-leitura-psicanalitica-em-hitchcock/>

BERTHON, D. & VARIERAS, M. Um caso de criança de F. Dolto: a menina do espelho ou a imagem inconsciente do corpo. In: NASIO, J. D. et al. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
______

COMO REFERENCIAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C. & PEREIRA, J. K. A ficção de encontro com a realidade: a psicose de Norman Bates e Ed Gein. Curitiba, 05 set. 2016. Disponível em: <http://psiqueempalavras.blogspot.com.br/2016/09/a-ficcao-de-encontro-com-realidade.html>. Acesso em: (dia). (mês). (ano).

Nenhum comentário:

Postar um comentário