domingo, 20 de janeiro de 2019

A institucionalização da liberdade



A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LIBERDADE


Alessandra Ferreira*

De quem é o poder?
Quem manda na minha vida?
Uns dizem que ele é de Deus
Outros, do guarda da esquina
Uns dizem que é do presidente
Outros, quem vem lá de cima
Cazuza, De Quem É O Poder?

Este ensaio traz algumas reflexões realizadas a partir de diversas leituras em conjunto com a proposta dos vídeos intitulados “Drogas e Cidadania” ¹ que foram organizados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em 2012 e estão disponíveis no YouTube.


Para verificar o que mudou e os resquícios do movimento institucionalizante manicomial que permanecem nas práticas hospitalares, precisamos compreender um pouco sobre a loucura a partir de seu contexto histórico. Na antiguidade, os gregos acreditavam que as doenças mentais eram intervenções dos deuses, enquanto que na Idade Média, os loucos eram vistos como enviados do diabo e queimados em fogueiras. 
No entanto, de acordo com Moore e Holder (2003) e Poland e Graham (2011), mesmo quando a perspectiva sobre os doentes mentais mudou de figura, eles ainda eram mantidos encarcerados em manicômios, lugares reservados àqueles que precisavam de atenção especial para suas enfermidades. Mas esse movimento resultou em uma barbárie para com os indivíduos que eram submetidos a rigorosos tratamentos que buscavam discipliná-los, para que se adequassem à norma, na intenção de expurgar a loucura do meio social, pois esta era vista como um mal dentro da sociedade. Portanto, o objetivo dos manicômios era isolar e tirar os doentes de circulação.
Historicamente, aponta Scarcelli (1998), as instituições psiquiátricas, antes de serem locais destinados ao tratamento e a cura, eram uma ferramenta utilizada pela sociedade para manter a ordem e o controle da sociedade. Por meio de doutrinas disciplinares, buscavam sanar as mazelas da sociedade capitalista que sentia seus valores ameaçados. 
Moore e Holder (2003) e Poland e Graham (2011) consideram que na atualidade, o uso de drogas vem se mostrando como um crescente problema e as soluções, por vezes, tendem a retornar a tais métodos primitivos de encarceramento e contenção daqueles que não estão adequados para o convívio social. O ser humano acaba se tornando institucionalizado, ao ser submetido a um mecanismo de controle social. As comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos ainda em funcionamento parecem ser um retorno a essa prática de institucionalização dos doentes, visando tratar o sintoma, mas não as causas e se colocando a serviço do capitalismo, ao invés de estar a serviço do ser humano e de seus interesses.
Isso pode ser refletido quando pensamos nas ideologias que permeiam tais instituições. Para Moore e Holder (2003) e Poland e Graham (2011), um ideólogo serve ao poder como recurso estratégico que oferece respaldo argumentativo para que se possa agir de uma determinada maneira, impondo um método coercitivo ou que pretende influenciar um grande grupo. Seus recursos recorrentes são o apelo para questões que movem as pessoas e tocam em seus valores, como a religião, os costumes culturais, as condutas familiares, dentre muitos outros. Tais elementos exercem uma grande influência sobre o comportamento das pessoas, principalmente no que diz respeito à moralidade e aos interesses políticos e econômicos. Quando há um apelo para tais questões, torna-se mais fácil institucionalizar um indivíduo e fazer com que este siga os ideais que estão sendo impostos a ele.
É difícil abandonar ideologias, conforme considera Gomide (2012), a população parte de um princípio que a internação, por vezes, é a única maneira de lidar com os problemas tais como o uso de drogas. No entanto, isso resulta em uma marginalização e segregação destes indivíduos.  
Para Muglia (2012), a dependência vem sendo enxergada como uma enfermidade, pois possui sintomas definidos e identificáveis, é uma condição patológica que aprisiona o sujeito, que acaba por não ter sua liberdade de escolha retirada de si. Portanto, deve ser considerado sim uma questão de saúde pública. Para realizar uma intervenção eficiente, é preciso compreender as dificuldades sociais e psicológicas que estão atreladas ao problema em questão e a solução deveria envolver tanto o Poder Público, como a comunidade e o próprio indivíduo. 
Pensando nisso, surgiu a proposta de ações de redução de danos, da qual falam Miranda e Machado (2007), algo que se apresenta de maneira desafiadora e controversa para alguns, principalmente no tocante da moral da sociedade, havendo uma vasta discussão sobre os benefícios que essas práticas podem trazer. O maior objetivo é reduzir os riscos e os danos aos usuários de drogas, sem repreender o uso. Mas isso acaba indo contra a proposta de eliminar o problema de forma rápida e mais “eficaz” para os gastos públicos, pois não precisam investir no tratamento ou pensar o usuário como um concernimento da saúde pública.
Segundo Gomide (2012), as instituições instauram regras que podem ser abusivas e repressivas, o que não condiz com a tentativa de reintegrar e reeducar esse indivíduo, para que este possa ser reinserido na sociedade, é apenas um método de detenção punitivo, que retira os direitos do sujeito como cidadão, principalmente o seu direito de ir e vir, a sua liberdade. A reintegração desses sujeitos visa uma metodologia que muito difere das propostas das instituições e, por essa razão, são necessários projetos e reformas nas políticas públicas do país que estejam mais interessadas no bem estar do cidadão. A psicologia muito tem a oferecer nesse âmbito, com sua visão humanizada do homem, que o vê em suas potencialidades acima de suas limitações.
Todo indivíduo pode, através de processos de aprendizagem de novas habilidades sociais, interiorizar novos valores e passar a reproduzir comportamentos que condizem com este novo repertório e isso não pode ser algo a se realizar através de punições ou práticas de controle aversivas para o sujeito. A solução está em trabalhar a auto-estima desses jovens e retirar o estigma que é colocado sobre eles, de que são sujeitos sem esperança e que não tem possibilidades de mudar o seu comportamento, porque já possuem uma “natureza perversa”, o que na maioria dos casos não é verdade. Para tal intervenção, deve-se propor medidas alternativas que venham a trabalhar essas questões comportamentais buscando sempre resultados positivos.

*Este texto foi escrito por Alessandra Ferreira e revisado por Jhéssica Pereira.

[1] Os seis episódios da série "Drogas e Cidadania", elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia para tratar aspectos pertinentes a este tema:

Episódio 01

Episódio 02

Episódio 03

Episódio 04

Episódio 05

Episódio 06


REFERÊNCIAS

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Drogas e Cidadania, 2012.

GOMIDE, P. I. C. Menor infrator: a caminho de um novo tempo. Curitiba: Juruá, 2012.

MOORE, R. S.; HOLDER, H. D. Issues surrounding the institutionalization of local action programs to prevent alcohol problems. Nordisk Alkohol & Narkotikatidskrift, v. 20 (English Supp.), 2003, pp. 41-55.

POLAND, J.; GRAHAM, G. Introduction: The makings of a responsible addict. In: _______. (Ed.).  Addiction and responsibility. Cambridge: MIT Press, 2011.

MACHADO, A. R.; MIRANDA, P. S. C. Fragmentos da história da atenção à saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil: da Justiça à Saúde Pública. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 14, núm. 3, jul-set, 2007, pp. 801- 821

SCARCELLI, I. R. Movimento antimanicomial e a rede substitutiva em saúde mental. São Paulo, 1998.

MUGLIA, C. B. Alcoolismo e as reações familiares: como abordar? Psicologia.pt, 2016.

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COMO CITAR ESSA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C. A institucionalização da liberdade. Curitiba, 20 jan 2019. Disponível em: <https://psiqueempalavras.blogspot.com/2019/01/a-institucionalizacao-da-liberdade.html>

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