sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A saúde física e mental do trabalhador - Parte 4: Apontamentos acerca da realidade do trabalho no Japão


Essa é a quarta postagem da nossa série sobre a saúde do trabalhador. Nesse texto, vamos lá para a outra extremidade do mapa e falaremos um pouco sobre a realidade do trabalhador no Japão. A cultura japonesa é muitas vezes ovacionada devido ao seu comprometimento desmedido com o trabalho, algo apoiado pelo universo corporativo e enxergado de maneira positiva. No entanto, as altas taxas de suicídio e mortes decorrentes do excesso de trabalho apontam para uma realidade bastante obscura dentro desse povo que está mais próximos de nós do que nos damos conta, pois hoje o Brasil possui o maior número de imigrantes e descendentes nipônicos, além das diversas grandes empresas japonesas espalhadas pelo país.


CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHADOR NIPÔNICO

Para compreender um pouco da mentalidade do cidadão japonês e sua relação com o trabalho, de acordo com Kincaid (2014), é preciso entender um pouco das raízes históricas do país, pois muitos costumes se estabeleceram nessa cultura através de uma herança sócio-histórico-cultural. 
A Segunda Guerra Mundial foi responsável por deixar o Japão em ruínas, rendendo duas de suas cidades (Hiroshima e Nagasaki) devastadas pela radiação das armas nucleares utilizadas durante a guerra, enquanto outras cidades foram destruídas pelos bombardeios americanos. O povo japonês nutriu desde então severas sequelas de trauma pós-guerra e sua mentalidade esteve condicionada por décadas sob a retórica de um regime militarista. 
Devido às circunstâncias, os japoneses foram levados a construir relações com os Estados Unidos da América, mesmo havendo hostilidade entre os dois países. Os americanos tinham interesse no Japão, porque enxergavam potenciais aliados nos japoneses; também era a oportunidade perfeita para que fossem plantadas as raízes do comunismo em suas terras, mas para tal, era preciso que o Japão se recuperasse da crise econômica. 
Para Kincaid (2014), essas relações resultaram na transferência de muitas das ideias ocidentais para o solo japonês e isso teve um grande reflexo nas relações trabalhistas deste povo. A implantação de uma gestão predominantemente científica trazia para o ambiente de trabalho um rigoroso método que se concentrava especialmente na produção. A gestão científica buscava extorquir o maior nível de produtividade, enquanto tentava eliminar a maior quantidade de mão-de-obra no processo. 
Kincaid (2014) considera que o sistema de trabalho japonês pode ser resumido pelo termo kaizen (改善), um termo guarda-chuva que quer dizer “mudar para melhor”. Na esfera trabalhista, em sua maior parte voltada para as áreas de produção, mas que vem se expandindo para outras áreas econômicas, o kaizen se mostra como uma via de mão dupla. Tal como o método científico sugere, a busca pelo aumento da produtividade está pareada à busca pela mão de obra qualificada, porém barata, visando sempre os ganhos da corporação para que possam obter a qualidade de trabalho desejada, com os menores gastos e desperdícios. Para os japoneses, qualquer tempo inativo é considerado um desperdício e até mesmo um prejuízo que pode resultar na demissão de funcionários, ou na redução de salários e benefícios em companhias que desejam realizar cortes de gastos. 
Conforme exposto por Zubaidah (2010), os japoneses possuem um imenso apreço pelas qualidades de boa educação, responsabilidade e senso de coletividade; é algo que aprendem desde jovens na escola e transportam para sua vida adulta, como valores essenciais para sua convivência social, principalmente no âmbito de trabalho, que é um aspecto de extrema importância em suas vidas. No entanto, para o trabalhador japonês – e para a cultura asiática em geral – parece haver uma dificuldade em relação ao recebimento de feedbacks, pois obter retorno de um superior é considerado algo raro e, geralmente, negativo para os trabalhadores. Os japoneses dão grande importância ao coletivo, de tal modo que o trabalho em organizações visa buscar a maior harmonia entre o grupo, deixando um pouco de lado a harmonia pessoal e subjetiva do trabalhador. 
Dentro de uma organização, as pessoas tendem a interpretar autoridade e responsabilidade como liberdade para a tomada de decisões de forma individual. No entanto, a autoridade e a responsabilidade tomam lugar em uma decisão dentro de um grupo e não de forma individual. O exercício de lealdade para com o grupo constrói uma relação de solidariedade e confiança, que são fundamentais para o desenvolvimento da consciência de grupo, sedimentada em diversos aspectos da vida dos japoneses. Para eles, o trabalho em grupo é muito mais valioso e rico do que o trabalho individual.  
Kincaid (2014) aponta que apesar da visão de coletividade dos japoneses, suas relações trabalhistas são permeadas pela competitividade entre funcionários, que é encorajada em algumas companhias que alimentam idéias de rivalidade. É comum para os japoneses que seja esperado estarem sempre ocupados e abarrotados de trabalho, com cargas horárias excessivas, sem pausas e que eles estejam sempre buscando formas de se aperfeiçoar na atividade que realizam. Com frequência, as organizações e companhias fazem cortes de funcionários e solicitam aos funcionários remanescentes que se prestem a horas de trabalho extras não remuneradas, mas que deve ter a mesma qualidade de serviço.
De acordo com Boggs (2013), evidentemente não são todas as companhias japonesas que adotam essas práticas e oferecem condições de trabalho tão questionáveis e precárias aos seus funcionários. As empresas específicas que atuam dessa forma, são chamadas de burakku kigyō (ブラック企業), que quer dizer “companhias negras”, termo que surgiu para definir as companhias dessa natureza, mas não é muito fácil encontrar registros que comprovem práticas degradantes de uma empresa ou ramo de trabalho, ainda que seja um fenômeno real e nada incomum no país, que mesmo ao ser abordado por formas de arte como animes e mangás[1], passa despercebido ou considerado apenas como “questão cultural”.
As burakku kigyō, define Boggs (2013), são companhias que adotam uma postura abusiva com seus colaboradores e dividem-se em três categorias: 
  • o tipo “descartável”: as práticas consistem em exploração de empregados com horas abusivas; 
  • o tipo “seletivo”: os empregadores contratam dezenas de funcionários apenas para dispensar todos de uma só vez, mantendo apenas aqueles que julgam “úteis” para a corporação; 
  • e o tipo “desordenado”: os funcionários são propensos a sofrer abusos sexuais e até mesmo físicos. 

Nenhuma dessas empresas oferece a seus empregados qualquer segurança ou direitos trabalhistas, são organizações que não reconhecem sindicatos e sua preferência se concentra na contratação de funcionários geralmente jovens, pois não possuem muitas opções no mercado de trabalho devido a falta de experiência, e também não têm muito conhecimento de como poderiam reivindicar seus direitos, tornando-os assim vítimas mais fáceis dessas companhias negras.
Diversos autores discutem que através dessas condições trabalhistas abusivas decorrem fenômenos tais como o karojisatsu (過労自殺), que quer dizer “suicídio por estresse” e o karoshi (過労死), que quer dizer “morte por excesso de trabalho”. Percebe-se ainda que não são somente os funcionários das companhias negras os únicos propensos a caírem nas garras desses fenômenos, o trabalhador japonês comum também tem inclinações à extrapolação de seus limites quando o assunto é trabalho (AMAGASA, NAKAYAMA & TAKAHASHI, 2005; BOGGS, 2013; KINCAID, 2014; JOY, 2016). 
Kincaid (2014) aponta que o fenômeno karoshi surgiu por volta de 1969, e até os anos 70, o fenômeno acontecia somente entre trabalhadores operários, ainda não tendo alcançado as classes de trabalho corporativo, no entanto, por volta de 1982, o problema chegou aos trabalhadores executivos. 
De acordo com Joy (2016), o Ministério da Saúde, Trabalho e do Bem-Estar entende o fenômeno karoshi como um tipo de morte que se dá por exaustão, que levam o indivíduo a desenvolver doenças cardiovasculares pelo excesso de trabalho; o karojisatsu é o fenômeno em que o indivíduo é levado a cometer suicídio por estresse e sua saúde mental é comprometida, também devido ao excesso de trabalho, no entanto, nestes casos só se reconhece a causa do suicídio como karojitsu se o empregado trabalhou por um mínimo de 160 horas de horas extras no mês anterior, ou seja, apenas se configura karojitsu se o trabalhador tiver duplicado a semana de trabalho, ou feito 100 horas mensais durante três meses consecutivos. 
Não há na Constituição japonesa um limite de horas de trabalho, de tal forma que as companhias possuem liberdade de exigir a quantidade de horas de trabalho que desejarem. Vale ressaltar que os cargos industriais que exigem mais do indivíduo tanto mental quanto fisicamente são os mais afetados por estes fenômenos. Tal postura parece ter grande influência do colapso econômico de 1990 que o Japão sofreu, onde a reestruturação e a redução de empresas colocaram os trabalhadores sob grande pressão. Os japoneses tendem a trabalhar mesmo sob condições precárias de saúde, tanto físicas quanto mentais.
Totsuka e Uenagi (1991), apontam que a cada ano o Japão apresenta uma estimativa anual de cerca de dez mil mortes causadas por doenças cardiovasculares desenvolvidas devido ao estresse e questões relacionadas à sobrecarga de trabalho. Amagasa, Nakayama e Takahashi (2005) também constataram o grande aumento nos índices de suicídio por karojisatsu e mortes por karoshi, configurando um problema de políticas públicas voltadas à saúde, compreendendo que há um grande impacto psicossocial na saúde mental que estão associados às questões trabalhistas, e diversos transtornos mentais que se desenvolvem devido às jornadas de trabalho excessivas. No entanto, são poucas as pesquisas que apresentem dados que concernem este assunto. 
Kincaid (2014) afirma que a dificuldade de compreensão acerca das mortes por karoshi e karojitsatsu, e a confusão causada por estes fenômenos se deve ao fato delas não serem enfermidades epidêmicas tais como as doenças virais causadas por vírus ou bactérias, e tampouco se tratam de uma dita “histeria coletiva”. Algumas pesquisas realizadas com trabalhadores revelaram que quase 90% dos homens japoneses não sabem como equilibrar a vida profissional e a vida pessoal, a cada cinco homens, quatro afirmam que cancelariam um encontro romântico ou outros planos se seus patrões pedissem para que fizessem hora extra. Dois em três homens admitiram em pesquisas que fazem pelo menos 20 horas a mais em sua jornada de trabalho, mesmo cientes dos riscos causados por trabalho em excesso, que podem até mesmo levá-los a morte.


[1] Aggretsuko (2018) é uma série da Netflix que retrata de
maneira cômica e caricata um pouco da realidade do trabalhador
no Japão e o estresse sob o qual vivem os japoneses.

REFERÊNCIAS

AMAGASA, T.; NAKAYAMA, T.; TAKAHASHI, Y. Karojisatsu in Japan: characteristics of 22 cases of work-related suicide. Journal of Occupational Health, Misato, Japão, jan. 2005. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/7913368_Karojisatsu_in_Japan_Characteristics_of_22_Cases_of_Work-Related_Suicide> Acesso em 23 mai 2017

BOGGS, S. P. Black companies: the ugly side of Japanese business. Employment relations, 2013. Disponível em: <http://www.employmentlawworldview.com/black-companies-the-ugly-side-of-japanese-business/> Acesso em 28 mai 2017

JOY, A. Karoshi: why do so many Japanese die from overworking? 2016. Disponível em: <https://theculturetrip.com/asia/japan/articles/karoshi-why-do-so-many-japanese-die-from-overworking/> Acesso em 23 mai 2017

KINCAID, A. Worked to death: karoshi and Japan's deadly work culture. 2014 Disponível em <https://www.japanpowered.com/japan-culture/worked-to-death-karoshi-and-japans-deadly-work-culture>. Acesso em 18 mai 2017

TOTSUKA, E. & UEYANAGI, T. Prevention of death from overwork and remedies for its victims. Geneva, aug. 1991. Disponível em: <http://karoshi.jp/english/overwork1.html> Acesso em 23 mai 2017

ZUBAIDAH, A. Culture as a moderator of job design. 2010 Disponível em: <http://arno.uvt.nl/show.cgi?fid=122236>. Acesso em 18 mai 2017

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COMO REFERENCIAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C.; PEREIRA, J. K. A saúde física e mental do trabalhador - Parte 4: Apontamentos acerca da realidade do trabalho no Japão. Curitiba, 30 nov 2018. Disponível em: <https://psiqueempalavras.blogspot.com/2018/11/a-saude-fisica-e-mental-do-trabalhador-4.html>

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