sábado, 27 de outubro de 2018

Homo homini lupus est



HOMO HOMINI LUPUS EST

Alessandra Ferreira


A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Chico Buarque, Apesar de Você



Ao estudar um pouco de psicanálise, ao ler textos de Freud, ao ler textos de Lacan, ao vivenciar o agora, no auge de toda essa angústia ocasionada pela nossa situação política, surge um questionamento: quem em face de toda sua experiência da vida e mesmo de seu conhecimento da própria história teria a coragem de aceitar qualquer condição desumana? A resposta vem com os acontecimentos que vivenciamos dia após dia. Fica “fácil” compreender que essa cruel agressividade que Freud tanto falava encontra-se apenas dormente em todo ser humano, só esperando por alguma provocação advinda do externo, do outro, enquanto ao mesmo tempo também aguarda por uma afirmação, para que possa se colocar a serviço da satisfação de seus desejos. E o investimento na agressividade agora tem voz. Vozes. Muitas delas, fazendo eco em cada esquina, tentando oprimir, amedrontar e silenciar toda e qualquer diferença. Eles chamam isso de liberdade de expressão. 

Lacan (1970) em um dos textos do Seminário 17, “O avesso da psicanálise”, fala que o discurso está sempre ligado aos interesses dos sujeitos, aquilo que Marx teria chamado de economia, porque sim, há política na psicanálise e há necessidade de posicionar-se em função daquele lugar que nos permite fazê-la: a democracia, o único lugar que fornece respaldo para a liberdade, que já por si é vacilante, e que agora encontra-se na linha de frente, bem no meio do alvo certeiro que visa aniquilar as diferenças, todas elas. Que visa aniquilar o saber. É por isso que precisamos falar. Enquanto a nossa voz ainda não foi silenciada, estaremos aqui usando nossas armas: as palavras, o conhecimento, o saber.
Freud (1930) em “O Mal-Estar na Civilização”, obra de grande relevância para se pensar sobre questões contemporâneas, como a política, assunto que deve ser debatido constantemente, discute a respeito de uma natureza humana intrinsecamente agressiva, que encontra sua contenção somente na repressão de suas pulsões. Os homens não são fundamentalmente bons e ainda que exista uma recusa em aceitar a existência dessa predisposição intrínseca e pulsional para a agressividade, ela existe. A prova disso ao longo da história é extensa.
O humanismo rejeita a ideia de que os homens não são seres dotados de bondade e pureza, em sua consideração incondicional de que eles não são fundamentalmente bárbaros, pois não se trata do instinto agressivo que predomina na espécie, mas uma série de experiências e contatos com o meio que molda uma personalidade agressiva. Freud (1930), no entanto, não achava possível a concepção de bondade fundamental, e também rejeitava a consideração de que todos os seres humanos poderiam se amar de maneira universal. Há sempre um desejo íntimo e obscuro de aniquilar o outro, sempre.
Freud (1930) fala muito da dificuldade que os indivíduos possuem em abandonar antigas posições em função de adquirir novas posturas, ideias previamente estabelecidas e, por que não, fixadas no indivíduo, encontram uma enorme resistência em desprender-se. Neuróticos não lidam bem com frustrações, então eles criam uma infinidade de sintomas substitutivos para lidar com o fundamental desamparo que assola a todos, gerando sofrimentos e dificultando as suas relações sociais. Portanto, a angústia, como Lacan (1963) indica conforme Freud a designou, como sinal ou efeito proveniente da situação traumática, estaria articulada ao perigo. Mas qual perigo? É, justamente, o perigo de vida, que quando ameaçado busca imediatamente uma solução, ainda que seja a aniquilação daquilo que causa o sentimento aversivo. É o desprazer que, para Freud (1926), vem acompanhado de uma ideia de que é preciso defender-se da ameaça, a qualquer custo.
No entanto, Freud (1930) aponta que, por mais que exista essa disposição para a constante aniquilação do outro, como uma ameaça iminente, os indivíduos têm uma necessidade de criar laços sociais. É a partir dessa premissa que ele irá refletir e contestar sobre uma das máximas cristãs: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Marcos 12:30-31). Este pensamento teria, supostamente, se instalado na sociedade e nas relações entre os indivíduos e, de uma maneira extremamente exigente, viria impor que sejam feitos sacrifícios e renúncias para que seja garantido o convívio social, exatamente como a inscrição da Lei, que delimita o que é permitido e o que é impedido, interditado. 
É esta interdição que Lacan (1957) propõe, onde tudo aquilo que se almeja estaria barrado por uma lei simbólica que possibilita o desejo, esse desejo sendo o de poder gozar enquanto o outro não pode, porque o outro não merece, não é digno de tal. A ideia geral é a de que existe algo a ser barrado ou proibido, existe uma (de)limitação do desejo e há a inserção de uma Lei.
Sob esta articulação, a afirmação em Marcos 12:30-31 faz as vezes dessa limitação necessária que separa o desejo de aniquilação do ato em si. Mas é muito bem colocado por Freud (1930) que um alguém deve ser (e se fazer) merecedor do amor de outro alguém. Não existe razão ou vantagem em colocar-se à disposição de sacrifícios e renúncias de forma igualitária aos indivíduos. Existe uma divisão entre objetos amados e objetos que não possuem qualquer valor de investimento libidinal, aqueles que não agregam significado ou estima. 
Aos que não carregam elementos identificatórios que permitem ao sujeito amar a si mesmo naquele indivíduo, que permitem que se possa amar o seu ideal do eu nele, aos que não merecem ser amados, o que lhes resta é o lugar de candidato a objeto de satisfação da tendência agressiva. E os homens satisfazem esse instinto o tempo todo, seja explorando o trabalho de um outro indivíduo sem recompensá-lo, seja humilhando alguém ou lhe infringindo dor, chegando ao ponto de torturar e matar.
A identificação então pode ser um mecanismo perigoso, pois se nessa identificação das massas houver um líder  que viabiliza os desejos outrora proibido, o outro indigno de receber a estima, conquistará o direito à hostilidade e o ódio, por ser visto como uma ameaça prepotente que precisa ser eliminada, aniquilada. Afinal, este outro é alguém que não pensaria duas vezes em causar danos ao próximo, se isso lhe trouxesse vantagens; é um alguém que não se importaria caluniar, ofender e demonstrar seu poder ao se ver desamparado e, portanto, recebe de antemão a punição certeira, o descaso, o desprezo. Por tal razão, Freud (1930) acreditava que a forma correta para a imponente afirmação em Marcos 12:30-31 seria a seguinte: “Ama teu próximo como este te ama”. O amor dos homens uns pelos outros não é, nunca foi e nunca será imparcial.
Em sua óbvia necessidade de controlar a predisposição agressiva de seus elementos, as civilizações criam mecanismos que possibilitam as formações de laços. Necessitam de elementos de efeitos morais que impeçam as ações que se inclinam à suas pulsões primitivas. Então entra a religião, não em sua suposta intenção fundamental de espalhar o “bem”, mas como um interesse do Estado, que ganha força, quando sociedade chega em um ponto de reconhecimento da falha que possui. Por não atender às exigências impostas por seus indivíduos, que sentem que foram violados, que foi-lhes permitido um sofrimento que não mereciam, aos poucos ele toma forma, corpo, dimensão, vai impregnando a civilização como se fosse uma praga e as pessoas tendem a se voltar para a primeira solução que promete assegurar a sua proteção. 
Elas se sentem então validadas a “arrancar o mal pela raiz”, a “fazer justiça”, mesmo que para isso, seja necessário pagar um preço muito alto. Quando há concordância de determinada opinião dentro de determinada comunidade, uma ideia antes inconcebível torna-se moralmente aceita. E o caos se instala, escancara o que há de pior em cada um e monta um campo de batalha. Que vença o melhor? 
E quem define o que ou quem é o melhor?

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Esse texto surgiu das minhas próprias reflexões sobre o momento em que estamos. Ainda que relutante sobre compartilhar, após ouvir diversas falas ao longo desses dias, de pessoas muito mais qualificadas para discutir esses assuntos, me senti encorajada e como as palavras tomaram corpo, aí está. Também tive grande auxílio de algumas leituras de uns textos aí dentro desses livros, todos me ajudaram a chegar nessa construção.

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FREUD, S. O mal-estar na civilização. 
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia.
ROGERS, C. A note on the nature of men.
LACAN, J. O seminário, livro 07: A ética da psicanálise.
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise.

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COMO CITAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C.; PEREIRA, J. K. (Rev.). Homo homini lupus est. Curitiba, 27 Out 2018. Disponível em: <https://psiqueempalavras.blogspot.com/2018/10/homo-homini-lupus-est.html>

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