terça-feira, 11 de outubro de 2016

Do Luto à Luta: apontamentos teóricos a respeito da família frente à deficiência

Esse trabalho foi realizado para disciplina de “Psicologia e Pessoas com Deficiência” no 4º período. Nele fazemos alguns apontamentos a respeito da família e como esta lida com a questão da deficiência, fazendo uma análise do documentário “Do Luto à Luta”, que traz a jornada de alguns indivíduos e suas famílias que lidam com a Síndrome de Down. 




DO LUTO À LUTA: APONTAMENTOS TEÓRICOS A RESPEITO DA FAMÍLIA FRENTE À DEFICIÊNCIA

       Mocarzel mostra em seu documentário “Do Luto à Luta” (2005), como ocorre o processo de aceitação de uma deficiência no âmbito familiar e de como é a vida das pessoas com Síndrome de Down. Como o meio familiar se dá como um alicerce para o desenvolvimento saudável dessas pessoas, assim como em qualquer outro contexto, a família é um órgão fundamental para a formação de um indivíduo. Tendo em vista que estas pessoas com Síndrome de Down poderão se desenvolver levando uma vida normal e autônoma. É possível perceber que dentro de um modelo construído socialmente, alguns paradigmas e estigmas ainda permeiam a situação do indivíduo que nasce com a Síndrome de Down, porém nem sempre esses paradigmas se mostram corretos ou são inflexíveis, quando confrontados com experiências reais de pessoas que receberam apoio de seus familiares e com isso tiveram oportunidades de sair desse modelo estruturado pelo puro diagnóstico médico que geralmente se coloca numa posição de baixas expectativas diante de tais casos, provando que estes são apenas limites impostos pela própria sociedade e não verdades absolutas a respeito desses sujeitos.
       Segundo Paniagua (2004) a espera de um filho é fonte de expectativa para os pais de como será seu bebê e de idealizações próprias em cima desta criança. Quando se tem a ciência de que este bebê terá uma deficiência, como no caso do documentário a Síndrome de Down, os pais tendem a se preocupar ainda mais com o futuro desta criança, dependendo de como a notícia é dada muitas limitações são impostas sobre o desenvolvimento dela. O ambiente familiar tem fundamental importância para o desenvolvimento de qualquer criança, não apenas crianças que possuem necessidades especiais. No entanto, é comum que as responsabilidades sejam transferidas a profissionais, quando se trata de crianças com necessidades especiais, acabando por focar nos problemas que a criança possui e negligenciando o próprio ambiente em que ela está inserida. Ter um filho é, por si, uma importante decisão e requer uma grande responsabilidade devido aos vínculos emocionais estabelecidos entre pais e filhos, que são fortes e importantes para o desenvolvimento da criança. No documentário se fala de como a Síndrome de Down apresenta características fenotípicas – como os olhos puxados – e de que não se devem impor limitações para o desenvolvimento de tais crianças, pois seu desenvolvimento poderá ser saudável e ela poderá ter uma vida autônoma no futuro, caso as condições adequadas lhe sejam proporcionadas.
       Para Paniagua (2004), a compreensão da mãe talvez seja a mais imediata. Isso ocorre porque é com ela que as primeiras experiências da criança serão realizadas. É a mãe – de modo geral – que irá alimentar e cuidar de seu bebê e nessa interação, ela começa a compreender e perceber as pequenas “vitórias” conquistadas por sua criança, mesmo depois de ter recebido uma informação de um médico dizendo que o filho não teria chances. Assim, ela mesma passa a lidar com a situação, interagindo com o filho e percebendo que não é exatamente daquela forma que as coisas podem ser. A mãe desenvolve uma sensibilidade maior em relação às necessidades da criança, principalmente nos casos de mães de filhos com Síndrome de Down. Com o tempo, o pai também passa a compreender e aceitar esse filho e pouco a pouco a família passa a ter consciência de que o que sabiam sobre a condição da síndrome, não são necessariamente condições inflexíveis. O afeto e o apoio da família são essenciais para que esse indivíduo possa se desenvolver bem.
       Para Paniagua (2004), desde que os pais tomam ciência da existência de alguma deficiência em um filho, essa descoberta é sempre um momento difícil, as reações variam de pessoa para pessoa e a notícia pode tanto ser recebida como um choque para alguns, como também pode haver outros que aceitam essa realidade sem maiores dificuldades. Segundo o autor, os pais normalmente passam por fases até a aceitação da deficiência, fases estas semelhantes as do luto (o que remete ao nome do documentário). A primeira fase é a fase de choque, a qual se caracteriza por deixar os pais “zonzos” com a notícia, a segunda fase é a da negação, quando não se aceita o problema, o ignorando muitas vezes, esta fase é seguida pela reação que pode apresentar três faces, a irritação, a culpa e a depressão, por fim ocorre a fase da adaptação e de orientação, se caracterizando com medidas práticas que visam ajudar a criança. No decorrer do filme percebe-se enfatizada a fase da negação, quando um pai comenta que até os quatro meses de vida do seu filho ele ainda não tinha aceitado a deficiência, o que posteriormente lhe causou o sentimento de culpa. Esse sentimento de culpa também é comentado por uma mãe, quando ela relata que supôs que a responsabilidade da deficiência poderia ser dela, relacionando-a a fase da gestação. Paniagua mostra que a negação pode se apresentar de modo imprudente, quando os pais possam não aceitar que seu filho tenha um tratamento adequado, pois ainda estão negando a deficiência. Enquanto a culpa se caracteriza por buscar em si mesmo a causa da deficiência, levando a uma reflexão da fase gestacional, do questionamento se houve algum erro.
       De acordo com Paniagua (2004), no caso das crianças com Síndrome de Down, isso também pode ocorrer devido à forma como os pais recebem a notícia dos médicos, que não possuem polidez e tato para repassar a informação. Eles não dão grandes expectativas para os pais – nos relatos, alguns pais comentam dizendo que ouviram coisas como “Parabéns, seu filho nasceu com um problema!”, “Ele não vai andar, nem falar e com muita sorte vai conseguir se arrastar!”, “Sua filha é mongolóide!” entre outras afirmações suficientemente rudes e sem sutileza alguma. O peso dessa informação é acentuado pela falta de tato e o choque se torna ainda maior por conta da preocupação comum aos pais. Nesse sentido, é comum que a maneira abrupta com que tal notícia é dada cause uma profunda tristeza nos pais, com ela, a negação e a culpa também são fatores que podem ser percebidos em alguns pais ou mães. Alguns podem preferir permanecer por algum tempo sob a perspectiva ilusória de que existe uma possibilidade de que a deficiência não seja algo definitivo até que ela seja diagnosticada, como uma prova concreta da situação da criança. Geralmente, os pais sentem também irritação, eles podem se irritar com eles mesmos ou “com Deus” – caso possuam uma religião ou crença – como a mãe que relata que quando descobriu sobre sua filha, disse: “Olha o que Deus fez com a gente!” ou podem ser levados a acreditar que foi “coisa do destino ter um filho com uma deficiência”, como forma de punição por alguma má conduta. As mulheres podem acreditar que fizeram algo errado durante a gravidez, dentre vários outros sentimentos que permeiam esse acontecimento na vida de uma família. Em todos esses aspectos, a depressão pode se instalar entre esses sentimentos, devido à angústia experimentada por esses pais.
       Paniagua (2004) fala deste bombardeio de informações com os quais os pais são obrigados a lidar assim que descobrem a deficiência em um filho e de como uma criança com deficiência requer maior comprometimento desses pais, posto que esta necessita de maiores cuidados, como o levar à fonoaudióloga, à fisioterapeuta, entre outros profissionais que forem necessários, nesta fase geralmente algum dos responsáveis (comumente a mãe) tende a “sacrificar” sua vida para dar apoio total a esta criança, deixando de lado seu trabalho, lazer, etc. Também é importante atentar para as condições financeiras da família, pois quando dependem do sistema de saúde da rede pública a trajetória poderá ser mais difícil, quando não, os gastos são elevados. Segundo Paniagua, os pais vivem também com uma constante preocupação com o futuro dessas crianças e essa preocupação perpetua por toda a vida. Ao longo da trajetória de vida dessa criança, os pais terão de tomar diversas decisões a respeito de atendimentos profissionais diversos, a dedicação cobrada desses responsáveis é presumivelmente maior por conta dessas particularidades inerentes à deficiência da criança. Todos estes são elementos contidos nos relatos de cada família no documentário, onde é possível perceber que cada pai e mãe têm seu próprio tempo e forma de lidar com a situação e proporcionar um desenvolvimento digno aos seus filhos. E eventualmente eles conseguem isso, depois que conseguem atravessar a rejeição e a negação que se instalam no primeiro momento em que se descobre sobre a deficiência. Os resultados são surpreendentes, tanto os que são obtidos pelas crianças quanto pelos pais. Ainda que a preocupação sempre esteja presente, é necessário que os familiares se adaptem.
       Para Paniagua (2004) a deficiência em si não se faz um problema, mas a interação com um meio social inadequado sim, afinal a família teria menos necessidades especiais se o meio social fosse apropriado. A fase da escolarização faz parte do meio social e é um momento difícil para a família, posto que deverão deixar a criança aos cuidados de outros, onde ela deverá desenvolver sua autonomia, o que pode se apresentar como um “pesadelo” para as famílias que tendem a superproteger a criança. Paniagua aponta para o modelo de ensino nas escolas especiais, considerando que essas “escolas especiais” são, na maior parte das vezes, um modo de negligenciar as crianças com deficiências, pois elas promovem uma separação e com isso, uma exclusão, o que atingirá um objetivo contrário ao da inclusão social. Instituições como a APAE fogem ao seu objetivo de proporcionar uma oportunidade maior a essas crianças. As escolas especiais deveriam ser um programa complementar que não substitui o ensino fundamental, as crianças com deficiências possuem o mesmo direito de estudar em escolas normais, como qualquer outra criança. Mas ainda assim, nos dias de hoje, se encontram os mesmos preconceitos. É preciso que a sociedade também esteja disposta a se moldar e adaptar-se às necessidades desses indivíduos, assim como a família precisa se adaptar, pois certamente, a inclusão começa em casa, mas é preciso ir além para que essas crianças possam conquistar o seu espaço de direito em meio à sociedade, não apenas em escolas, mas no futuro, quando adultas. É necessário que elas possuam espaço para trabalhar, relacionar-se de maneira saudável e construir suas próprias histórias. A sociedade deve abrir caminhos para que eles próprios possam perseguir seus objetivos e possam participar ativamente na sociedade como cidadãos, assim como qualquer outra pessoa, este é o caminho para um projeto de inclusão genuína. 
       Paniagua (2004) explica que é a partir dessa autonomia que a pessoa também desenvolverá sua sexualidade, algo que fará com que os pais reflitam sobre tal assunto. Ao longo do filme o tema sexualidade é abordado, percebe-se que a maneira como a família lida com assunto irá ajudar o jovem nesta fase, afinal independente da deficiência eles passam pela fase da adolescência a qual há uma maturação do instinto sexual, algo normal e saudável. No filme também se menciona sobre a autonomia financeira, outra situação onde a família também é fundamental, pois ela que irá permitir que isso ocorra, ajudando na autonomia da pessoa quando tenta não superproteger esse indivíduo.
       No final do documentário ocorre uma encenação dirigida por um casal que possuem Síndrome de Down, em que se destaca a encenação que a mulher dirigiu, a qual consistia num médico anunciando a deficiência do filho ao pai e dizendo que a mãe havia falecido durante o parto, então perguntam a ela por que ela “matou” a mãe, ela diz que foi para ilustrar que um pai também é capaz de cuidar de um filho com deficiência. Este episódio chamou a atenção, pois de acordo com Paniagua (2004), as mães normalmente tendem a sacrificar a sua vida em prol de total dedicação a criança com deficiência, não tendo mais a possibilidade de lazeres ou de manter seus trabalhos. Na vida cotidiana pode-se perceber que realmente é comum uma mãe abandonar tudo, para cuidar somente de seus filhos. A encenação que foi dirigida por esta mulher que tinha a Síndrome de Down no filme, nos faz perceber que este fato pode incomodar também as pessoas que têm deficiência e que o ideal seria ocorrer um balanceamento de responsabilidade entre os responsáveis em tais casos.
     O apoio da família torna estes caminhos a serem percorridos mais brandos e permite que oportunidades se abram para esse indivíduo. Isso não significa estabelecer uma relação totalmente dependente, mas sim estabelecer laços de confiança que são importantes para que esse indivíduo se desenvolva com suficiente auto-estima e ciência de que ele próprio possui capacidade e competência para perseguir seus objetivos e conquistá-los. A família também precisa aprender a caminhar junto com a criança e saber que apesar das dificuldades, será possível superá-las, também ter seu tempo para aceitar a situação é importante, pois só assim os pais serão capazes de lidar com essa criança, quando puderem deixar de lado suas próprias questões pessoais e a rejeição não se torne um empecilho que venha a se colocar no caminho do estabelecimento de um vínculo com seu filho.

Documentário "Do Luto à Luta" (2005), direção Evaldo Mocarzel


REFERÊNCIAS 

PANIAGUA, G. As famílias de crianças com necessidades educativas especiais. In: C. Coll, A. Marchesi & J. Palácios (Orgs.), Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos do desenvolvimento e necessidades educativas especiais (pp. 330- 346). Porto Alegre: Artmed, 2004.

Do luto à luta. Direção: Evaldo Mocarzel. Produção: Leila Bourdukan. Fotografia: Carlos Ebert. Brasil: Mais Filmes. 2005. 1 DVD (75 min.), son., color.

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COMO REFERENCIAR ESTA POSTAGEM

FERREIRA, A. C. C. & PEREIRA, J. K. Do luto à luta: apontamentos teóricos a respeito da família frente à deficiência. Curitiba, 11 out. 2016. Disponível em: <http://psiqueempalavras.blogspot.com.br/2016/10/do-luto-luta-apontamentos-teoricos.html>

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