Essa postagem traz um apanhado de fragmentos de um trabalho que foi realizado no 5º semestre para a disciplina de Psicologia e Educação I, com alguns conceitos a respeito da temática da automutilação focando nos jovens com idade escolar. Esse trabalho foi posteriormente reutilizado no semestre seguinte na disciplina de Estágio Básico em Psicologia Escolar, onde foi possível observar na prática alguns dos conceitos apresentados no texto e como eles operam na realidade externa. O trabalho foi originalmente realizado em grupo, mas os fragmentos utilizados aqui são de autoria de Alessandra Ferreira e Elisângela Cavalheiro, revisado e organizado para o blog por Jhéssica Pereira.
BREVES
APONTAMENTOS SOBRE AUTOMUTILAÇÃO
Também denominados Comportamentos Auto-Lesivos
(CAL), são padrões comportamentais descritos como atos deliberados de
autodestruição, ou seja, o ato de provocar danos ao próprio corpo por escolha,
essas atitudes revelam-se como fonte de sensação de prazer ou como uma forma de
aliviar o sofrimento psíquico dos sujeitos que os praticam, pois estes tendem a
explicar tais comportamentos como uma forma de alívio de tensões e dizem que
tais comportamentos atuam como reguladores de emoções dolorosas, o foco dos
sentimentos é deslocado para a dor física, servindo como escape emocional ou
como meio para descontar um sentimento de raiva ou frustração momentânea.
Embora esses comportamentos possam estar interligados a intenções suicidas, nem
sempre esse é o caso, no entanto, ainda que não estejam ligados a intenções
suicidas, os comportamentos autolesivos aumentam os riscos de suicídio por se
apresentarem como ações de alto risco para o indivíduo e elas podem
eventualmente levá-los ao suicídio. Os transtornos mais comuns aos adolescentes
tendem a se enquadrar dentro de quadros depressivos desde os mais leves até os
mais severos, como crises de ansiedade ou transtornos alimentares e esses
comportamentos têm maior destaque entre jovens na idade escolar, mas é seguro
afirmar que eles podem ocorrer em qualquer idade (EKERN, 2012; SOMEAH, 2012).
A automutilação é um padrão comportamental que pode
ser influenciado por filmes, músicas ou outro tipo de informações que são
veiculadas na rede ou pela mídia, pois a adolescência é uma fase em que o jovem
está em busca de experiências novas e assim, eles podem ser facilmente
influenciado por seus ídolos e desejarem reproduzir atos autolesivos. É
importante ressaltar que nem todos os adolescentes que praticam o ato de se
cortar uma vez irão continuar praticando-o, o alívio ou a transferência de
angústias para a dor causada no corpo só são vivenciados por aqueles indivíduos
que já apresentam algum quadro de estresse, ansiedade ou qualquer condição
psíquica que esteja fora da normalidade, esses fatores são os responsáveis pela
falsa sensação de alívio que o sujeito possa vir a sentir enquanto pratica a
automutilação, se não houverem questões emocionais vinculadas ao ato de
cortar-se, o sujeito irá sentir apenas dor. Depois de um tempo, a automutilação
pode tornar-se um vício para o indivíduo, que tende a praticar o ato mesmo sem
estar sentindo alguma tristeza ou passando por um momento de euforia (GIUSTI,
2014).
O indivíduo aparenta depender da dor para se manter
estruturado e por se tratar de uma questão inconsciente, não percebe que de
fato está proporcionando o sofrimento para si próprio, em uma busca de se
manter em um círculo vicioso de dor. Quando uma pessoa está sofrendo, ela se
isola da sociedade, pode desenvolver outras disfunções ou transtornos de ordem
patológica e experimentam um vazio em existir. É exatamente isso que os jovens
expressam com suas atitudes autodestrutivas, eles se encontram em um imenso
sentimento de vazio e falta de significado que são frequentemente encobertos
pelos transtornos psicopatológicos (VIEIRA & PIRES, 2009; MIRANDA, 2011).
Um sentimento em comum observado entre os jovens é
o tédio que muitos sentem diante da vida, muitos se encontram perdidos em uma
busca por identificações e significação em suas vidas e se deparam com o
caminho da autodestruição de forma paradoxal para sentir fortes emoções e, ao
mesmo tempo, anestesiar emoções fortes, afirmando o objetivo de tais
comportamentos se trata de “apenas uma maneira para matar o tédio”, ou que
funcionam como uma “válvula de escape” em momentos difíceis. Os jovens da
atualidade são constantemente acusados de serem superficiais e não possuírem
planos e ambições para o futuro (MIRANDA, 2011).
O mundo virtual faz parte da vida dos jovens dessa
relação e eles próprios reconhecem a seriedade dessa condição que se torna
bastante ambivalente, pois assim como a rede pode ser usada para fins
positivos, ela também pode oferecer alternativas até mesmo nocivas. Na época da
adolescência o jovem é altamente influenciável e a disseminação das práticas de
automutilação na internet tem tornado essa prática um fenômeno que pode até
mesmo ser considerado epidêmico. Nas mídias ocorre uma propagação ou uma
romantização de doenças psiquiátricas, o jovem atualmente em algum momento seja
por influência de um grupo ou da própria mídia simplesmente “decide que tem
depressão” ou que “é bipolar”, apenas porque é o que as pessoas estão sendo
naquele momento, é o que as músicas estão falando a respeito, como nos casos
das músicas da cantora Lana Del Rey, onde temas como suicídio, melancolia e
relações abusivas são romantizados em suas letras ou filmes mais conceituados
como “As Virgens Suicidas” ou “Garota, Interrompida” estão transmitindo para o
sujeito, repassando uma idéia de que há poesia e arte nos atos e comportamentos
autodestrutivos, há beleza e charme no suicídio, mas na realidade, o jovem
acaba por não compreender que o que é visto na televisão ou no cinema se passa
apenas de teatro, encenação, é uma representação dramática de temas sérios, a
realidade possui uma face bastante diferente, assim, essa representação
romantizada da autodestruição torna-se altamente nociva ao jovem que busca
referência e traços identificatórios nas histórias dos filmes ou nos ídolos do
momento (AVOLIO, 2016; MIRANDA, 2011; NETO, 2014).
Sinais de
automutilação
- Arranhões (com as próprias unhas ou com objetos), cortes (com agulhas, pregos, lâminas, vidro, lápis), machucados, hematomas recentes e visíveis;
- Morder-se (mãos, braços, lábios, língua, cantos dos dedos, roer unhas “na carne”);
- Ossos quebrados (propositalmente);
- Cicatrizes de cortes ou queimaduras;
- Cortes na pele (cutting), queimaduras (isqueiros, cigarros, substâncias como combinar sal e gelo e aplicar na pele), arrancar os cabelos (tricotilomania), reabrir feridas ou não permitir a cicatrização apropriada (dermatotilexomania);
- Acidentes autoinfligidos (bater ou golpear partes do corpo de forma proposital);
- Engolir objetos (alfinetes, tampas de caneta, plástico, etc);
- Consumo de substâncias tóxicas;
- Abuso de medicação sem intenção de suicídio (aumentar doses de remédios, utilizar medicação sem necessidade);
- Comportamento de isolamento;
- Dificuldades sociais (aprendizagem, relacionamentos) e familiares (conflitos);
- Uso de mangas-compridas e calças (mesmo no calor) para esconder as lesões.
Para trabalhar com jovens é preciso estar por
dentro do que é o jovem. Não no sentido cientifico de jovem, explicado por
teorias sobre adolescência de diversos autores, não se trata de entender o
jovem através de uma visão acadêmica, mas sim buscar entender o mundo em que
eles vivem, entender o jovem através do jovem. Geralmente, eles se expressão
através do estão lendo, assistindo e ouvindo e não é só uma tentativa de
acompanhar as modas do momento, os sentimentos estão explícitos em seus gostos
e interesses. O que há em comum entre os jovens, mesmo que em todo o resto não
tenham uma característica de gostos e preferências sequer em comum, é que em
sua grande maioria, eles tem um imenso sentimento de “tédio” e “desconforto”.
Os jovens hoje se sentem em uma posição onde eles sabem que precisam fazer
parte de alguma coisa, sabem que os pais esperam que eles sejam “algo na vida”
e que a sociedade também espera algo deles e isso é uma grande parte do
problema, porque nessa idade, isso é exatamente o que eles não sabem. Eles não
têm uma consciência ainda do que eles deveriam ser, do que deveriam fazer parte
e onde deveriam se encaixar. São muitos os fatores que fazem com que os jovens
sintam angústia, isso vai desde o avanço do capitalismo que contribui com o
avanço tecnológico e que “cobra” que eles estejam sempre “por dentro” de tudo
que tem de mais novo até as questões mais íntimas deles a respeito das coisas
que eles gostam ou querem. Sabemos que boa parte do tempo da vida de um jovem,
ele passa na escola. É nesse ambiente que ele vai fazer amigos e começar a
fazer parte de grupos e ter uma vida social.
Gradativamente, o jovem vai se afastando cada vez
mais das influências que ele tem dentro de casa e cada vez mais se aproximando
das influências externas, não só as da escola e do grupo de amigos, mas de tudo
aquilo que ele vê na televisão e principalmente na internet. Como esse jovem
está atrás de uma constituição de um lugar e uma forma de expressar para o
mundo que eles não são pessoas “vazias” ou “sem propósito”, eles buscam se
inserir em grupos com os quais se identifiquem. Se eles não se identificam com
esse grupo, eles no mínimo tentam fazer isso e para se encaixar, vão repetindo
o comportamento desse grupo para que possam ser acolhidos. Alguns desses grupos ou tribos podem ser positivas
pros jovens, como os otakus e os gamers, pois é um tipo de grupo bastante
enriquecedor pro sujeito, onde os jovens participam atividades recreativas como
os cosplays e os eventos que frequentam que é algo excelente para a
socialização, além de estimular a criatividade e permitir que se expressem através
dos personagens que escolhem representar em seus cosplays, sendo geralmente
personagens com os quais eles se identificam intimamente. Mas também existem os
grupos mais nocivos, como, possivelmente, poderia se citar o caso dos emos,
pela questão do culto a melancolia e o fato de que integrantes desse grupo
estão mais propensos a engajar nos comportamentos de automutilação, justamente
por ser um grupo que prefere se isolar dos outros e enaltecer os pontos
negativos de suas personalidades. Todas essas representações, positivas ou
negativas, mas principalmente as negativas acontecem devido a uma espécie de
fenômeno que poderia ser denominado como “romantização de comportamentos
autodestrutivos” que acontece na mídia. Existem inúmeros filmes e séries com personagens
“depressivos” e esses personagens sempre são considerados os “descolados” e
“legais” e os jovens, em sua busca por um status em seus grupos, às vezes
buscam se espelhar nessas pessoas. É por essa razão que precisamos estar
atentos ao que o jovem está ouvindo, lendo, assistindo para conseguir ter uma
noção do que ele está sentindo. É necessário pegar todas essas “pistas” para
que se possa fazer um trabalho de entender o que está sendo representado
através dessas formas simbólicas de expressão desses jovens e assim poder
acolher cada um desses indivíduos.
A escola geralmente acaba não se vendo preparada
pra esse tipo de coisa. Às vezes temos uma idéia um pouco cristalizada de que
se aproximar dos alunos irá quebrar a relação de autoridade que existe entre os
educadores e os alunos e por essa razão parece mais fácil se afastar da questão
e fazer uma vista-grossa pro problema. Essa compreensão vai além daquilo que é
teórico, dito em livros e artigos, essa questão está mais relacionada a criar
uma relação de empatia e acolhimento. É importante entender que se esse jovem
está se cortando, é sim uma tentativa de chamar a atenção, mas pra algo que
está muito além do que ele provavelmente consegue dizer com palavras. É uma
tentativa de expressar algo que está errado com ele, expressar algo que ele por
alguma razão se sentiu impossibilitado de dizer, em nenhum momento podemos
simplesmente assumir que esse seja apenas um ato de rebeldia ou uma fase que
vai passar. Ainda que possa se tratar de uma fase, é uma questão séria demais
pra que a gente possa simplesmente tratar como se não fosse nada, pois se a
pessoa chegou ao ponto de retornar essa agressividade pro seu próprio corpo, é
porque ela já está em seu limite e com essa atitude, ela está demonstrando naquele
momento algo que está transbordando.
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Dicionário
de Psicologia APA. Porto Alegre: Artmed, 2010.
AVOLIO, Raquel. O cinema
mainstream e a romantização dos transtornos mentais. In: Obvious Magazine. Cinema, 2016. Disponível em:
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EKERN, Jacquelyn. Self-Injury and eating
disorders. In: Eating Disorder Hope.
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Diagnosis & Co-Occurring Disorders, 2012. Disponível em:
<http://goo.gl/4AB2Jg>
GIUSTI, Jackeline. Cutting: automutilação
na adolescência é indício de tristeza. In: Notícias Terra. Educação, 2014.
Disponível em: <http://goo.gl/OBxDje>
MIRANDA, Melissa. Inércia: a Geração Y no
limite do tédio. São Paulo: Idéias &
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NETO, Lauro. Prática de
automutilação entre adolescentes se dissemina na internet e preocupa pais e
escolas. In: O Globo. Sociedade. Saúde.
Disponível em: <http://goo.gl/3goueu>
SOMEAH, Kathleen. Common self-harm behaviors. In: Eating Disorder Hope. Eating Disorder
Treatment. Dual Diagnosis &
Co-Occurring Disorders, 2012. Disponível em: <http://goo.gl/RzXeTw>
VIEIRA, Dirce Fátima & PIRES, Maria Luiza. O sofrimento como vício. São Paulo: Integrare Editora, 2009.
COMO CITAR ESTA POSTAGEM
CAVALHEIRO, E.;
FERREIRA, A. C. C.; PEREIRA, J. K. (Org.) Breves
apontamentos sobre Automutilação. Curitiba, 10 mar 2017. Disponível em:
<http://psiqueempalavras.blogspot.com/2017/03/breves-apontamentos-sobre-automutilacao.html>
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