Esse trabalho foi realizado no quarto período para a disciplina de Psicologia Analítica. Na postagem anterior, trouxemos uma síntese dos capítulos I, II e II do livro “O Espelho Índio” de Roberto Gambini, onde o autor aborda o conceito de projeção na abordagem analítica. Agora, trazemos a análise do filme “Dúvida”.
O FILME "DÚVIDA" E O CONCEITO DE PROJEÇÃO
Sinopse
do filme “Dúvida”
Dúvida
(2008) é um filme dirigido por John Patrick Shanley. A história se
passa na época do assassinato do presidente Kennedy em 1964, é
enfatizada a escola católica St. Nicholas, dirigida pela rígida e
conservadora freira Aloysius Beauvier (Meryl Streep) que após ouvir
o sermão do moderno padre Flynn (Philip Seymour Hoffman), fica
intrigada com sua atitude, pedindo para que as demais freiras
ficassem “de olho” em seu comportamento, então a freira James
(Amy Adams), conta a irmã Aloysius que o padre Flynn depositava
extrema atenção no aluno de 12 anos de idade, Donald Miller (Joseph
Foster) – primeiro aluno negro da escola – que também era
coroinha da igreja. A irmã James conta que achou peculiar o padre
chamar o garoto para a reitoria, pois quando ele voltou apresentava
uma conduta estranha e um hálito alcoólico. Este fato basta para
que a irmã Aloysius comece a suspeitar que o padre Flynn possa estar
abusando sexualmente de Donald. A irmã Aloysius confronta o padre
com suas acusações, o qual fica irritado, negando tais denúncias.
Ela recorre então à mãe de Donald, Sra. Miller (Viola Davis),
contando para ela suas suspeitas, a Sra. Miller fala que de qualquer
forma o filho dela logo irá sair daquela escola, que ele só precisa
se formar lá, para assim almejar um futuro melhor, ela pede para que
a irmã deixe seu filho fora dessa história, pois seu pai não
poderia suspeitar do que poderia estar ocorrendo, a Sra. Miller teme
pela vida de seu filho. No entanto a irmã Aloysius ameaça expulsar
Donald da escola, fazendo com que sua mãe lhe contasse que ele
sempre apresentou uma postura diferente, insinuando que ele tenha um
comportamento homossexual. À vista disso, a irmã Aloysius confronta
o padre novamente, ameaçando encontrar provas de seus abusos fora da
igreja, ele enfatiza que isto está fora da hierarquia da Igreja, a
qual ela fez votos de obediência, a irmã pergunta para o padre se
ele teria algum acordo com os demais padres para se protegerem de
tais acusações, mente falando que ligou para uma freira da antiga
paróquia na qual o padre Flynn vivia e que lá ocorreram as mesmas
suspeitas, a irmã então exige que o padre mude de paróquia
novamente, o padre Flynn lhe pergunta se ela nunca errou. A irmã
Aloysius consegue que o padre saia de sua paróquia, mas na realidade
ele teve uma promoção, ela conta sobre suas suspeitas para o
monsenhor, porém nada ocorre. A irmã então passa a duvidar sobre
seu julgamento, confessando à irmã James – que sempre acreditou
na inocência do padre – que ela não tinha mais certeza.
Segundo
Gambini (1988) a projeção é algo que está relacionado ao
inconsciente de uma pessoa, a qual é lançada para um objeto,
podendo emergir desta forma, conteúdos inconscientes e desconhecidos
para a consciência. Então se percebe que a projeção pode trazer
assuntos inaceitáveis de um indivíduo, visto através do outro.
Para que haja esta projeção o objeto em questão deverá retê-la
como um “gancho”, ocorrendo quando duas pessoas constelam o mesmo
complexo, podendo resultar numa atração mútua ou até mesmo numa
repulsa. No filme, isto pode ser visto no momento em que a visão
moderna e liberal do padre Flynn quando afrontada com a posição
conservadora e rígida da irmã Aloysius desencadeia o conflito
inicial entre ambos, sendo o sermão com a temática “dúvida” o
que servira de estopim para que as desconfianças começassem a se
instalar na irmã Aloysius, chegando ao ponto em que ela passa a
afirmar que ele estivesse abusando de um dos garotos da escola, ainda
que não houvesse provas que sustentassem estas convicções, tendo
como base simplesmente a oposição de seus pensamentos. Percebe-se
aqui que a projeção resultou numa repulsa[1], a irmã Aloysius
insiste que o padre Flynn estava abusando de um dos garotos sem
provas concretas, apenas alegando que sabe através de sua
experiência subjetiva, afinal uma projeção só pode ocorrer caso
haja um local apto para recebê-la, aonde ela irá se enganchar, ou
seja, para projetar conteúdos de origem sexual, por exemplo, é
necessário que exista conhecimento sobre tais conteúdos, posto que
a irmã Aloysius já tivesse experiência anterior relacionada à
pedofilia dentro da igreja, isto fica claro quando ela diz a irmã
James: “Eu te disse para vir até mim quando acontecesse, mas eu
esperava que este dia nunca chegasse”.
Segundo
Zweig e Wolf (2000) e Samuels (2003) a projeção seria um dos
refúgios do arquétipo sombra, afinal quando se reage de modo
intenso diante de um comportamento de outro, na realidade pode-se
estar reagindo a algo inaceitável seu, sendo a sombra o lado
negativo da personalidade presente em todos, pois ela nos torna
humanos, assim sendo, projetamos em outras pessoas o que nos é
inadmissível. Quando consciente a sombra tem chances de ser
corrigida ou modificada, porém quando inconsciente se torna
demasiadamente difícil sua correção, podendo irromper abruptamente
na consciência se colocando até mesmo contra os atos mais bem
intencionados de um indivíduo. No momento do filme em que a irmã
Aloysius é confrontada pelo padre Flynn, quando ele rebate suas
acusações questionando se ela nunca havia “cometido um erro”.
Aqui se pode questionar se ela estaria sendo confrontada pela sombra
através do padre, afinal a culpa é um elemento fundamental para que
a projeção dos conteúdos da sombra sejam exteriorizados, pois
confrontando a irmã Aloysius com a culpa que ela poderia ter, ele
tenta com isso diminuir a sua, posto que a projeção da sombra se
caracteriza como um ato de crueldade, enquanto a sombra pode ser até
mesmo representada como um demônio.
Segundo
Stein (2006) é possível observar a forma como uma pessoa trata
outras pessoas e como trata a si mesma, sendo esse tratamento hostil
e hipercrítico ou acolhedor e caloroso, ou ainda essa pessoa pode
julgar aos outros com extrema severidade e se importar mais com sua
própria vida interior, algumas pessoas não são tão afetadas por
seus processos interiores, já outras acabam ficando entregues a
estes processos que lhes causa uma desagradável sensação. Essa
forma de tratar seu interior caracteriza anima e animus, enquanto o
tratamento do meio exterior seria referente à persona do indivíduo.
A irmã Aloysius apresentava uma persona rígida e implacável, o
qual, por sua vez, pode-se supor que está sob a possessão do
animus, o ego passa a se identificar com a personalidade da anima ou
animus quando está sob controle destas.
Segundo
Samuels (2003) quando uma mulher está sob a possessão de animus,
ela será regida pela razão, sendo controladora, severa e
intransigente, dentro de tal possessão a pessoa poderá ter sua
personalidade alterada com características referentes a animus que
estão ligadas a prepotência e agressividade. No filme a irmã
Aloysius insinua ao padre Flynn que ele e os outros padres de certa
forma se protegiam, a igreja seria um universo de predominância
masculina, isso fica claro no contraste entre as cenas de jantar das
freiras onde elas comem vegetais em silêncio, enquanto os padres
bebiam, fumavam e se divertiam comendo carne vermelha durante a ceia.
A irmã Aloysius demonstra certa revolta diante desta hierarquia,
isso também pode estar relacionado ao fato dela já ter sido casada,
onde na posição de esposa, a mulher também era vista como submissa
ao homem, também tendo em vista a época em que viviam. Mesmo a irmã
Aloysius tendo uma posição de relativo poder diante das outras
freiras, ela ainda deveria se submeter à autoridade masculina. Esta
postura adotada pela irmã Aloysius poderia ser vista como uma
rejeição a um modelo arquetípico feminino. Com base em Souza e
Baldwin (2000) o arquétipo-Maria, onde presumivelmente as mulheres
deveriam restringir-se aos estereótipos de fraqueza, submissão e
passividade, desempenhando os papéis reservados a elas pela
sociedade e a religião, como cuidar da casa e consentir com as
exigências impostas pelos homens. Segundo Bueno (2012), em
contrapartida, a irmã Aloysius poderia estar assumindo o arquétipo
da Guerreira ou Heroína, que ostentam as características de
coragem, perseverança, ousadia e valentia, que faz com que a mulher
se dedique a um ideal e seja capaz de superar os obstáculos que se
colocam em seu caminho.
Segundo
Gambini (1988) e Samuels (2003) quando se projeta algo, por mais que
isto só demonstre um caráter do que estava inconsciente para um
indivíduo e que se apresente na realidade como algo distorcido e
ilusório, para a pessoa que o projeta é algo verdadeiro, quando a
projeção é realizada há um sentimento provisório de satisfação.
Durante o filme a irmã Aloysius apresenta-se irredutível com a
idéia de que o padre Flynn abusou do garoto. Nota-se que a procura
incessante por provas sobre este suposto abuso poderia ser uma
tentativa de satisfação dos conteúdos da projeção, mesmo que na
realidade não houvesse tais provas, então num primeiro momento a
irmã Aloysius acredita que o que ela acusa no padre Flynn é uma
realidade concreta, partindo para a busca por provas que tenta
estabelecer um reconhecimento de sua afirmação como verdadeira, não
conseguindo enxergar nenhum tipo de irracionalidade em sua acusação,
levando em consideração apenas sua experiência, posto que o mundo
externo de um indivíduo se responsabiliza pelo material utilizado
para a realização da projeção, sendo este uma delegação de um
fragmento da psique.
Segundo
Jung apud
Gambini (1988) menciona-se que diante do objeto poderá ocorrer uma
atitude empática[2][3], estando relacionada à assimilação que o
indivíduo possa fazer ao se sentir ou se colocar no lugar do objeto,
desta forma compreendendo seus motivos, por mais que estes sejam
divergentes de seus próprios, ela ocorre como uma ação consciente,
que anteriormente se dava como inconsciente. Ao decorrer do filme
nota-se tal atitude empática na irmã James, pois mesmo convivendo
com a certeza que a irmã Aloysius tinha sobre a conduta do padre
Flynn, ela se coloca no lugar dele, não acreditando em sua culpa.
Jung notou o papel da projeção na empatia, embora avaliando o da introjeção como um papel maior. Pode ser necessária uma projeção para atrair o objeto para a órbita do sujeito; porém, será uma introjeção do objeto que facilitará a resposta empática. (SAMUELS, 2003, p. 83)
Segundo
Gambini (1988) após um longo período de “auto-reflexão” o
indivíduo poderá perceber quais conteúdos que proporcionaram a
projeção, tendo aqui uma descoberta de tais assuntos que outrora
eram inconscientes. No final do filme, a irmã Aloysius diz para a
irmã James estar com dúvida sobre seu julgamento referente à
conduta do padre Flynn. Aqui se supõe que a irmã Aloysius possa ter
refletido sobre suas desconfianças, vendo que não existiam provas
concretas, além de sua até então certeza. Segundo Pieri (2002)
pode ter ocorrido neste momento uma integração da sombra, que seria
o ato de reconhecer e aceitar os aspectos negativos da personalidade,
assim a irmã Aloysius poderia estar notando que depositou sobre o
padre Flynn seus conteúdos, à vista que suas acusações poderiam
não ser cabíveis, tendo como principal fundamento somente o modo
divergente de seus hábitos, mesmo fazendo parte da mesma paróquia,
o padre Flynn possuía práticas inaceitáveis para a irmã Aloysius,
como por exemplo, escrever com caneta esferográfica, algo que a irmã
denominava como um modo preguiçoso, ou ainda tomar chá com açúcar
e fumar cigarros, coisas que em sua visão não deveriam ser feitas,
posto que deveriam viver uma vida austera.
Notas
[1]
Segundo Pieri (2002), a repulsa poderia estar relacionada com um dos
aspectos da sombra, a projeção da sombra que ocorre quando um
indivíduo não reconhece em si conteúdos psíquicos negativos e
atribui estes conteúdos ao outro.
[2]
Segundo
Filho (2010), a palavra empatia deriva do grego “pathos” que
significa sentimento que enternece a alma.
[3]
Segundo Samuels (2003), a empatia está essencialmente ligada com o
conceito de amor.
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Padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) e Donald Miller (Joseph Foster) |
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Irmã James (Amy Adams) |
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Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep) |
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Padre Flynn e Donald Miller |
REFERÊNCIAS
BUENO,
Murilo Gabriel Berardo. Cinema e
arquétipos femininos: representação das relações de gênero na
filmografia de Tata Amaral. Tese
de mestrado: Universidade Federal de Goiás, 2012. Disponível em
<http://mestrado.fic.ufg.br/up/76/o/Dissertacao_final_em_PDF_MURILO_GABRIEL_BERARDO_BUENO.pdf>
Acesso em, 11 de outubro de 2015.
DÚVIDA.
Direção: John Patrick Shanley. Produção: Scott Rudin. Fotografia:
Roger Deakins. Estados Unidos: Miramax. 2008. 1 DVD (104 min.), NTSC,
color. Título original: Doubt. Produzido por Scott Rudin.
GAMBINI,
Roberto. O espelho índio: a
formação da alma brasileira.
2ª edição, São Paulo: Axis Mundi, 1988.
FILHO,
Sylvio de Campos Lindenberg. Negociação
e processo decisório. Curitiba:
IESDE Brasil S.A., 2010.
PIERI,
Paolo Francesco. Dicionário
junguiano. São Paulo: Paulus em
co-edição Petrópolis: Vozes, 2002.
SAMUELS,
Andrew. Dicionário crítico de
análise junguiana. 1ª edição.
Rio de Janeiro: Imago, 2003.
SOUZA,
Eros & BALDWIN, John. A
construção social dos papéis sociais femininos.
Revista Psicologia: reflexão crítica, 2000. pp. 485-496. Disponível
em <http://www.scielo.br/pdf/prc/v13n3/v13n3a16> Acesso em, 11
de outubro de 2015.
STEIN,
Murray. Jung: o mapa da alma uma
introdução. Tradução: Álvaro
Cabral. 5ª edição, São Paulo: Cultrix, 2006.
ZWEIG,
Connie & WOLF, Steve. O jogo
das sombras. Tradução: Ana
Maria Lobo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
_______
COMO CITAR ESSA POSTAGEM
FERREIRA, A. C. C. & PEREIRA, J. K. O filme "Dúvida" e o conceito de projeção. Curitiba, 29 mar 2017. Disponível em: <http://psiqueempalavras.blogspot.com/2017/03/o-filme-duvida-e-o-conceito-de-projecao.html>. Acesso em: (dia). (mês). (ano).
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